Anatomia de Uma Queda
Há um senso estético e narrativo em filmes de corte. Os courtroom movies, catapultados pela Hollywood dos anos cinquenta em clássicos de Otto Preminger, Sidney Lumet e Billy Wilder, traziam consigo não somente exemplares aulas de montagem e direção, mas também um eixo gravitacional: a justiça enquanto recompensa ao final dos julgamentos, com os pesos (ou não) morais envolvidos.
Ao final de Anatomia de uma Queda, logo após a sentença dada a Sandra Hoyter (Sandra Huller), ela apresenta um sentimento conflituoso e quase frustrante. “Quando isso acontece, você espera uma certa recompensa, mas ela não vem”, diz a escritora, denotando que, no filme de Justine Triet, o resultado do julgamento e a aplicação de justiça ou não são o que menos importa.
Anatomia de um crime
Acusada do assassinato do marido, Sandra se vê em pouco tempo já dentro desse universo onde ela é o eixo gravitacional: tudo girará em seu entorno, em seu corpo, sua subjetividade e sua fala. Triet utiliza o áudio de forma inteligente; um dos principais argumentos narrativos do cinema é o principal invasor da compreensão no filme. Interrompe conversas e cria momentos de tensão, como logo na primeira cena do filme, impedindo a entrevista de uma estudante sobre as obras literárias de Sandra. Além disso, deturpa leituras de contexto, entendimentos e opiniões e molda relações, principalmente de Sandra com seu filho Daniel (Milo Machado Graner), que sofrera um acidente que tirou grande parte de sua visão.
Portanto, o que envolve Anatomia de uma Queda dentro do gênero do filme de corte? Há o uso de acessórios clássicos, como o promotor de acusação. Ele constrói uma relação de poder e superioridade para com a ré, num jogo que Triet apresenta pelo uso de câmeras plongée e contra plongée no momento de trocas entre as personagens. A câmera pelo ponto de vista de Sandra observa o promotor de baixo, com a imposição de suas falas frias e agressivas.
No entanto, ficaríamos reféns desse jogo se ele persistisse, pois poderia ele conflitar com a própria esquiva do filme em não se interessar pela justiça e pela sentença. Por isso, as quebras dessa dança são envolvidas na mise-en-scène dentro e fora do tribunal. A começar pela torre de babel, que se apresenta como um fator primordial no complicado matrimônio de Sandra e Samuel, o marido morto.
Indo além da dicotomia
Ele francês e ela alemã, entram em um acordo proposto – ou imposto, segundo Samuel – de falarem um idioma neutro, o inglês. Inglês que é popularmente negligenciado pelos franceses. As poucas cenas em que vimos de fato os dois contracenando juntos também não fazem questão de determinar os papéis de vítima e vilão. Isso é inteiramente uma ação subjetiva que Justine Triet salienta. Sandra é sim mais turrona e agressiva, bem-sucedida e bem-resolvida com sua sexualidade. Já Samuel é frustrado, amargurado pelas escolhas feitas e morador da coitadolândia.
E nem teria como existir mais espaço de tela ao marido. A “dona da verdade” e principal manifesto da relação com o marido e da própria vida é Sandra. É na meta-xará que está a força do longa-metragem. Sandra Huller é, em todas as facetas do adjetivo, monstruosa. Sofre, mas, ao mesmo tempo, omite para não permitir que leiam seus livros de outra forma que ela gostaria. É autora de um fascinante e ambíguo ser-humano.
O uso do som e do silêncio em Anatomia de Uma Queda
No áudio, novamente, reside a tênue compreensão do universo ao seu redor em Daniel. Vítima de um acidente há anos, precisa dos guias de tecidos espalhados pela casa para se guiar e se posicionar em um local onde parece ser nocivo a todos ali. O inglês que usam como idioma neutro não lhe facilita, portanto ele precisa do diálogo em francês para entender e ser entendido.
Mais à frente no longa, usa-se o áudio novamente no clímax do teatro judicial. Uma conversa gravada entre o casal, que resulta em briga, e que apresenta uma biópsia de outra disputa de poder: o casamento.
Mas é no vácuo assertivo de fatos que Anatomia de uma Queda se prova como um estudo de fragilidades humanas. A inconsistência nas falas, a hipocrisia e a imperfeição dentro das relações são muito difíceis de serem dispostas e traduzidas como evidências, provas concretas a uma condenação ou não. E é assim que o longa-metragem francês, vencedor de prêmios de Melhor Longa Estrangeiro e de Melhor Atriz para Sandra Huller, se coloca: a área cinza e inabitável para quem está de fora, seja o advogado de defesa, amigo e antigo amante Vincent, a tutora judicial Marge, a estudante. O universo único de Sandra é inabitável e impenetrável.
Direção: Justine Triet
Roteiro: Justine Triet, Arthur Harari
Edição: Laurent Sénéchal
Fotografia: Simon Beaufils
Design de Produção: Emmanuelle Duplay
Elenco: Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado, Daniel Antoine Reinartz, Samuel Theis
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