Ataque dos cães
Última atualização: 18/12/2021
Às vezes comparo alguns filmes a imagens ou objetos que em algum momento me impressionaram. Ataque dos cães, de Jane Campion, disponível na Netflix, me lembra as sofisticadas mantas de tear produzidas em Minas Gerais. Nelas, me encanta como as linhas de diferentes cores vão se mesclando em padrões que podem se diversificar a cada batida do pente.
Curiosa, busquei compreender como os fios verticais (fios do urdume) e horizontais (fios da trama) vão se alternando, ora estes embaixo e aqueles em cima, ora o contrário, para compor inúmeros contrastes de cores e relevo. Tudo isso é trabalho do pente, que se movimenta verticalmente organizando as distinções internas de um mesmo padrão que se deseja construir.
O resultado final é sempre uma variedade de cores e formatos em um mesmo tecido, dispostos de maneira tão simétrica e intricada, que a princípio não sabemos definir as partes que o formam. Sem uma análise detalhada, só se fica no todo, no superficial. Mas, ao observarmos com mais tempo, identificamos a variedade na unidade, como se diz na Linguística.
Assistindo ao artesanato proposto por Campion para contar a história de quatro personagens em conflito nas Rochosas sem fim, constatamos que ali há a articulação perfeita entre trama e urdume. Mas somente essa constatação nada diz sobre suas linhas narrativas que se sobrepõem em revezamento. No entanto, isso basta para reconhecermos que estamos diante de um feito que poucos cineastas alcançam. Campion abre o recorte para narrativas simultâneas e interligadas que recusam e desconstroem qualquer leitura linear e monocromática de sua obra.
(Escrevi acima “história de quatro personagens em conflito”, mas já fique sabendo o leitor que isso apenas quantifica o elenco principal, portanto não diz absolutamente nada sobre o que está na tela)
O passado no presente de Ataque dos cães
Em sua estrutura, Ataque dos cães me lembrou um pouco As ondas, de Trey Edward Shultz, que considerei o melhor filme de 2020. Ali também se encontram duas narrativas, uma como urdume, e outra como trama. Porém, Shultz estabeleceu uma hierarquia entre elas, em que a trama se situa como narrativa subliminar, construída pelos movimentos de câmera. No caso de Ataque dos cães, Campion opta pela simetria perfeita, que exige do espectador uma visualização precisa das partes que compõem seu tecido para dialogar de maneira mais completa com o que se desenrola diante de seus olhos.
Mas essa simetria não pode de forma alguma ser entendida como paralelismo. Assim como nas mantas de Minas, dois fios, antes separados, se enredam com tanta ordem e consistência, que de partida não sabemos onde um começa e outro termina.
Não me foi fácil dar conta disso. Enquanto assistia ao filme, muitas imagens me impactaram, mas se apresentavam como pontas soltas, sem conexão com o resto. Aos poucos, porém, elas vão se justificando, tornando a linearidade temporal da narrativa de Campion um detalhe ao qual não se deve dar nenhuma importância.
Outro dia, assistindo a uma fala de Wladimir Safatle, aprendi que o presente não pode ser entendido como um agora, somente. Ou como aquilo que os estadunidenses denominam de forma gerundiva: ongoing. Há no presente camadas de passado, e também de futuro. Essas camadas, muitas delas sólidas como rochas, é que, num aparente paradoxo, constituem a fluidez do presente, porque lhe dão causas e justificativas que preenchem espaços vazios. Conhecedora disso, Campion se sustenta na narrativa linear amarrando-a às camadas de passado e futuro que compõem o presente, para que no fim possamos ter o vislumbre de uma vida inteira.
A ocupação de todos os espaços
Quanto ao espaço, as magníficas paisagens neozelandesas, locações do filme a que a tela da smartv não é nem de longe fiel, nos dão uma ideia mínima do território gigantesco ocupado pela vida de Phil Burbank (um Benedict Cumberbatch bem mais do que intenso, como costuma ser: selvagem). A opção de Campion por isolar e intensificar os sons diegéticos produzidos pelo personagem também pede a sala de cinema, para que possamos nos fixar mais em seu universo espiritual complexo e hipnótico.
Na estrutura do tecido de Campion há o urdume composto de cenários dominados pela figura poderosa de Phil Burbank. Não apenas o espaço, que ele controla com autoridade absoluta, mas também o tempo, que define seus discursos e os valores – é tudo dele. São os alicerces que ele construiu ao longo da vida na inútil tentativa de silenciar sua dor. Todo o presente do filme, que testemunhamos a cada frame, existe em função do passado de Phil Burbank.
É necessário ao espectador entrever um pouco desse passado, a partir das pistas que aqui e ali Campion nos deixa. Dessa forma, ele verá que, sob o couro grosseiro de suas roupas de vaqueiro, existe uma delicadeza de cetim, de musselina. Delicadeza até maior do que a do jovem que com a mãe invade sua vida sem nenhuma autorização. Delicadeza e segredos cada vez mais difíceis de guardar, sobretudo diante das ameaças à quebra de seu equilíbrio frágil como cristal.
Os invasores
Mas há também a trama composta por seu irmão George (Jesse Plemons), a esposa Rose (Kirsten Dunst) e seu filho do primeiro casamento Peter (Kodi Smit-McPhee). Os três, atores igualmente intensos, brilham mesmo diante de um Cumberbatch gigantesco como o cenário a seu redor. Plemons sutilmente abstrai aquela sensação de bomba-relógio característica de suas atuações mais minimalistas para ser a figura de esteio de Rose, junto com Smit-McPhee, notável em sua entrega de uma figura ambígua, e por isso fascinante. Na disputa de três contra um, ganha o espectador.
Sobre essa disputa, preciso também dizer que a pegada naturalista escolhida por Campion coloca os personagens de Plemons, Dunst e Smit-McPhee sempre em desconforto e em franca desigualdade com o corpo exposto e à vontade de Phil. O figurino dos três se compõe de um vestuário não adaptado ao ecossistema cru, sem refinamento, das pastagens de Montana/Nova Zelândia. Seus corpos se movimentam com dificuldade e estranhamento, mal contendo um desejo existencial deslocado e nunca dito, nunca assumido.
Como fazer filmes sobre o desejo
Sendo Ataque dos cães um filme sobre o desejo, me agrada imensamente ver muito de O piano (1993) nele. Mas me agrada mais ainda notar a ousadia de Campion como artista. Na década de 90, O piano me marcou inesquecivelmente, entre outras razões, por seu clímax arrasador. Uma confissão: clímax que me fez desmaiar no cinema.
Em Ataque dos cães, Campion opta por um outro tipo de clímax, muito mais desafiador. No filme, o clímax arrefece em impacto para se estender num tempo que perdurará mesmo depois que o espectador desligar a TV. Ele pensará sobre o filme, empregará sua mente em reproduzir na memória a tessitura construída por Campion. Com isso, descobrirá que desordens aparentes na verdade descortinam harmonias. E concluirá, por fim, que, tão importante quanto a trama, é também do urdume que o filme trata.
Obras artísticas se sustentam sobre estruturas de conhecimento que nos ajudam a entender o mundo. Por exemplo, a genialidade de Parasita (2019), de Bong Joon-ho, está em expandir para o campo da desigualdade social estruturas primordiais de percepção espacial. Acerca disso, é possível comparar Ataque dos cães a A professora de piano (2001), de Michael Hanecke, Projeto Flórida (2017), de Sean Baker, e, mais recentemente, Titane (2021), de Julia Ducournau. Os quatro filmes demandam que abandonemos padrões de conhecimento burgueses e judaico-cristãos de bem e de mal para de fato compreendermos o arranjo ético-estético (se considerarmos que ética é uma estética do viver) e artístico que os seus realizadores propõem.
(Por força de minha cosmovisão cognitivista, quase nunca uso a palavra compreender ou entender, porque assumo que todas as pessoas sempre entendem as coisas, em alguma medida e dimensão. Mas tenho uma boa margem de convicção que, no caso dos filmes acima, é de compreensão mesmo que se trata.)
O Western sob o olhar feminino
No caso de Ataque dos cães, a comparação se estende também a First cow (2020), de Kelly Reichardt, não apenas por ser um Western, mas também por subverter o gênero em suas bases ideológicas. Diferentemente do filme de Reichardt, no mundo de Phil Burbank não cabe o feminino, daí seu horror a Rose, o pivô do conflito. Nesse pormenor, Campion respeita a cartilha que por décadas imperou no Cinema do gênero.
Entretanto, em First Cow Reichardt propõe que o Western inclua relações humanas baseadas em termos diferentes do que estamos acostumados a ver em filmes desse tipo. Analogamente, Campion, em Ataque dos cães, também propõe novas éticas ao gênero. Até porque, nas imensidões da América do Norte, certamente há mais de uma forma de vivenciar a potência arrebatadora da cordilheira e as emoções que ela provoca.
Direção: Jane Campion
Roteiro: Jane Campion
Edição: Peter Sciberras
Fotografia: Ari Wegner
Design de Produção: Grant Major
Trilha Sonora: Jonny Greenwood
Elenco: Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons, Kodi Smit-McPhee
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