babygirl imagem

Este texto inclui spoilers sobre “Babygirl”, de Halina Reijn (2024), e “A Professora de Piano” (2001), de Michael Haneke.

 

Nossa falta de imaginação despovoa o futuro.

Simone de Beauvoir

O que uma mulher deseja não importa

Dois homens de diferentes gerações atracam-se diante de uma mulher. Exaustos depois de alguns socos, mesmo assim conseguem trocar algumas palavras. O mais velho, o marido, afirma: “Ela usou você. Ela abusou de você. Você sabe disso, certo? Humilhação, submissão, dominação, o que quer que você queira chamar… é apenas neurótico, certo? O masoquismo feminino é nada mais do que uma fantasia masculina. É uma construção masculina…” Nesse momento, ele é interrompido pelo mais jovem, o amante: “Não, você está errado. Essa é uma ideia ultrapassada de sexualidade. Sinto muito, mas você não entende”.

Essa é uma das cenas finais de “Babygirl”, que define e sintetiza esse interessante e relevante filme. O diálogo acima, referente à mulher que assiste aos dois interlocutores, é travado sem que ela pronuncie sequer uma palavra. Ou seja, são dois homens decidindo o que ela pensa, sente e quer. Entre eles, o maior salário é o dela. Mas isso não quer dizer absolutamente nada.

Essa cena materializa um dos principais aspectos do patriarcado: os homens se dando o direito de decidir e definir as estruturas e movimentos do mundo e do pensamento, por eles próprios e pelas mulheres também.

A escolha pelo mais difícil

A diretora e roteirista Halina Reijn tinha diante de si um leque de opções para materializar a subalternidade feminina em diferentes campos de existência social. Com efeito, ela escolheu talvez um dos mais complexos e multifacetados: a sexualidade, e, mais amplamente, como a sexualidade atravessa e é atravessada pelas relações de poder que desde sempre tiveram seus contornos e direcionamentos definidos pelos homens.

Comentários que ouvi e li sobre “Babygirl” não raro o comparam com outros filmes que tratam do prazer sexual por meio do masoquismo. Contudo, todos eles, “Babygirl” inclusive, são muito menos sobre masoquismo do que sobre o patriarcado. Porque, para a gente definir se uma prática sexual é masoquista ou não, é preciso antes definir o que é uma prática sexual dentro de limites normalizados desde sempre na humanidade. E, evidentemente, esses limites foram definidos por homens, que de partida estabeleceram para si papeis e valores diferentes daqueles que definiram para as mulheres. Sobre isso, recomendo a leitura de “O direito ao sexo: feminismo no século 21”, de Amia Srinivasan.

As mulheres se culpam enquanto os homens se divertem

No mundo inventado pelos homens, eles se permitem e celebram entre si práticas sexuais que condenam moralmente nas mulheres. Enquanto eu escrevia este texto, o podcast Rádio Novelo Apresenta exibiu o relato da escritora Vanessa Barbara acerca de seu marido adúltero e do grupo de emails que ele mantinha com 15 colegas homens. Nesse grupo, eles se gabavam de suas conquistas fora do casamento e propunham trocar mulheres entre si como se elas fossem objetos descartáveis. A descoberta do grupo pela esposa apenas causou a seu então marido irritação e indignação de macho ferido. Após a divulgação do episódio, ele publicou uma resposta-padrão, provavelmente elaborada pelo Chat GPT.

Em “Babygirl”, Romy (Nicole Kidman espetacular, em alguns momentos agregando traços de sua persona pública) se envolve com um estagiário (Harris Dickinson) na empresa onde é CEO. Com ele, realiza seus antigos desejos sexuais masoquistas, interditados pelo marido reacionário e careta (Antonio Banderas). O marido de Romy não acredita na ubiquidade do desejo, então de fato ela não tinha chance nenhuma ali.

babygirl marido

Mas, diferentemente do que faz o ex-marido de Vanessa Barbara, Romy não conta a ninguém o que está fazendo, e se sente duplamente culpada: por ser infiel e por ser masoquista. Um detalhe: ela se sente culpada mesmo tendo de fato, verdadeiramente, o motivo que homens alegadamente usam para trair suas esposas: o de que elas não os satisfazem sexualmente.

Babygirl é uma meia distopia sobre o patriarcado

Em “Babygirl”, tem-se o patriarcado com a chave invertida. Existem aqueles filmes distópicos que imaginam um mundo matriarcal, comandado por mulheres, mas com a mesma estrutura de poder inventada pelos homens. Elas mandam, eles obedecem. Elas falam, eles se calam. Elas detêm o poder econômico e político, eles ficam em casa vivenciando a imanência, nos termos de Simone de Beauvoir: criam os filhos, limpam a casa e fazem a comida.

Em “Babygirl” é quase a mesma coisa, à exceção do fato de que Romy administra seu pequeno reino corporativo como uma espécie de concessão que os homens fazem a nós mulheres. Eles nos permitem um pouco de poder de vez em quando, para que não reclamemos muito por estarmos subalternizadas. Exemplos esparsos de empoderamento feminino aqui e ali servem para fazer de conta que a estrutura de mundo está mudando.

quarto

Digo isso porque o poder de Romy é apenas uma ilusão de poder, não é o verdadeiro poder, porque esse sempre está nas mãos dos homens e é moldado segundo sua vontade. Observe-se que, mesmo detendo poder, Romy precisa ajustar-se às normalizações patriarcais, e sabe disso.

Para ascender ao poder é preciso se masculinizar

Romy se esforça em ser mãe e dona de casa exemplar, ela e seu avental de classe média estadunidense. Talvez, suponho, o avental seja um indicativo de que ela sabe que só consegue ser verdadeiramente mulher dentro de casa, porque, no trabalho, para não sucumbir e fracassar, ela precisa se masculinizar, ou seja, enquadrar-se na estrutura de poder, que é inerentemente uma estrutura masculina.

Por isso é que, ao ascender ao poder, Romy permanece engessada e obrigada a agir como os homens fariam no lugar dela. Assim, nunca se autoriza a subverter a estrutura verticalizada que encontrou quando chegou lá. Então, ao se ver em apuros, não tem outra alternativa: ou se masculiniza de vez, ou perde tudo o que conquistou.

teatro

Em suma: o discurso corporativo de evolução ética com as mulheres no poder, enunciado mais de uma vez em “Babygirl”, é uma grande falácia, como sua assistente provou na prática. Porque, é claro, poder e ética nunca ocuparam o mesmo espaço. Mais ainda: poder e potência feminina não são nem minimamente compatíveis. Nesse sentido, existe uma mensagem subliminar em “Babygirl”: se quisermos superar o patriarcado e todos os seus vícios, precisamos acabar com o poder de umas pessoas sobre outras.

Uma comparação: “A Professora de Piano”

Dentre todas as comparações entre “Babygirl” e filmes sobre masoquismo feminino, me parece que o cotejo mais apropriado é com a obra-prima de Michael Haneke “A professora de Piano”, com a atuação histórica de Isabelle Huppert. Neste filme absolutamente insurgente e subversivo, Haneke realiza o feito de que os estadunidenses não são capazes, e nem há perspectivas de que um dia serão: o de realmente exibir na tela o sexo mais bizarro, o mais não-normalizado possível, a ponto de nem poder ser chamado de sexo, se não suspendermos todas as nossas crenças pré-concebidas e estereótipos sobre prazer sexual.

A profunda honestidade da protagonista de “A Professora de Piano” em relação a sua própria condição existencial é uma das coisas mais ousadas que já testemunhei um uma obra cinematográfica. O masoquismo de “Babygirl”, considerado quase um escândalo no puritano mundo anglo-saxão, é brincadeira inocente diante do que Erika Kohut (Huppert) manifesta e declara a seu candidato a amante, que, horrorizado, frustrado e contrariado, confundindo honestidade com disputa de poder, a estupra para mostrar definitivamente quem manda ali.

cachorro

Nesse sentido, então, “Babygirl”, que também tem uma protagonista que tenta (nos Estados Unidos da era Trump só dá para tentar, mesmo) ser honesta consigo mesma em sua justa busca por prazer, tem um final semelhante mas amenizado em relação a “A professora de piano”, porque, ao fim do filme, só não há estupro porque há consentimento. Romy consente em um sexo com o marido que a mantém na mesma situação de insatisfação a que as mulheres não raro são relegadas: nenhum prazer, porque o prazer delas é o de darem prazer dos homens, e não, como deveria acontecer, serem agentes de seu próprio prazer.

“Babygirl” é um filme sem esperança

Babygirl não transmite qualquer mensagem sobre a possibilidade de superar o modelo masculino de poder, porque não há nenhum modelo feminino de poder: o poder é inerentemente masculino. Mulheres que chegaram ao poder e sobrevivem ali tiveram de, como Romy, se masculinizar, amputando seu desejo, qualquer que fosse, e seguindo a vida com isso. Quem tentou romper com a norma fracassou completamente.

A tese de “Babygirl” é a de que, sem implodir com o poder, não é possível superar a estrutura excludente de mundo como a que temos: esta em que uma metade da humanidade define como a outra metade existirá. Num mundo livre do patriarcado, estaremos também livres de relações de poder e opressão em todas as esferas públicas e particulares.

leite

Porém, em pleno século 21 a humanidade não consegue superar o medo do sexo e o uso do sexo como instrumento de poder e opressão. Em pleno século 21, as pessoas se agarram à religião e optam voluntariamente por entidades divinas imaginárias que lhes digam o que fazer com o seu desejo. Então, quando alguém entrega a outro ser humano, como Romy faz com Samuel, o que milhões entregam à entidade inventada, essa pessoa é rotulada como doente, neurótica. O grande mal da humanidade é naturalizado, e o mundo trata como doença individual a doença histórica de que padece há séculos.

Um outro mundo é possível?

Se não for possível um outro mundo fora da estrutura patriarcal, será a ruína da humanidade. Este mundo que temos agora é insustentável, suicida, em todos os sentidos: econômicos, ecológicos, políticos éticos, morais. Só conduz à autodestruição.

Isso pode acontecer mesmo com algumas constatações, várias delas narradas pelo Cinema, como em “First Cow” e “Querida Alice”. São sinais de outras formas de viver sem a macroestrutura social definida pelo patriarcado. Sem competição, selvageria ou inimigos. Mas o patriarcado capitalista, fundamentalista e colonial neste momento está vencendo, ganhando eleições, impondo suas regras.

dança

Entretanto, mesmo assim, há uma evidência importante em “Babygirl”. Mesmo formatada à indústria em que realizou seu filme, Halina Reijn parece fincar pé entre os perdedores. É nesse lugar que estou também, mas no meu espírito ainda não capitulei. Diferentemente de Romy, ainda não desisti. Ainda prefiro não fantasiar, mas sim sonhar.


Ficha Técnica
Babygirl (2024) – Estados Unidos
Direção: Halina Reijn
Roteiro: Halina Reijn
Edição: Matthew Hannam
Fotografia: Jasper Wolf
Design de Produção: Stephen H. Carter
Trilha Sonora: Cristobal Tapia de Veer
Elenco: Nicole Kidman, Harris Dickinson, Antonio Banderas, Sophie Wilde

 

Publicado Por

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *