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Ela é o Diabo

Última atualização: 12/06/2021

Uma vez, em um Dia dos namorados qualquer, fui ao posto de gasolina abastecer meu carro, e tive o desprazer de ouvir o frentista dizer: “pois é, hoje vou ter de fazer uma média com a Dona Maria”. Ouviu de mim poucas e boas. Quero crer, na melhor das hipóteses, que ele ainda acredita que os homens se casam para fazer um favor às suas mulheres porque não pertence à geração que assistiu inúmeras vezes a Ela é o Diabo (1989), filme dirigido por Susan Seidelman, na indefectível Sessão da tarde, da Rede Globo.

Sim, porque é no mínimo anacrônico o pensamento do frentista. É uma pena, por sinal, que muitos homens tenham parado suas mentes no tempo, cegos diante dos sistemáticos movimentos coletivos de autonomia financeira e emocional das mulheres. É uma pena que eles não percebam que esses movimentos melhoram a vida de todo mundo, porque a dependência de uma pessoa a outra, de qualquer tipo, também é um peso imenso sobre o provedor. E homens assim ainda existem em quantidade, haja vista a insistência de muitos em piadas que desqualificam e deploram o casamento, sempre uma prisão para os homens, e não importa que eles tenham se casado por espontânea vontade.

dela é o diabo

Sabemos que o Dia dos Namorados foi uma invenção do publicitário João Dória. O pai do hoje governador de São Paulo queria alavancar o comércio numa época normalmente fraca para as vendas. Mas o sucesso da data junto aos casais inspira reflexões sobre os relacionamentos amorosos na contemporaneidade. O que significa relacionar-se amorosamente, namorar, casar, num tempo em que os homens não são mais os provedores absolutos do lar, e muitas mulheres não mais permanecem em casamentos ruins por dependência financeira? Aliás, cada vez mais famílias são chefiadas por mulheres. Pior para os homens. Ou não. Abra a sua mente, rapaz.

Vamos discutir a relação

Com o fim da exclusividade do amor romântico como projeto de vida para as mulheres, o Dia dos Namorados acaba se tornando também uma oportunidade para discutir a relação. Por isso escolhi Ela é o Diabo para nos lembrarmos de que não é de hoje que o feminismo está afetando a narrativa cinematográfica. Com efeito, a diretora Susan Seidelman é uma entusiasta do assunto: é regular a parceria entre Seidelman e o ícone da revolução sexual Madonna, incluindo o longa Procura-se Susan desesperadamente (1985).

É provável que a ideia central de Ela é o Diabo esteja sumarizada na fala de Mary Fisher (Meryl Streep), a escritora de romances açucarados que rouba Bob Patchett (Ed Begley Jr.), o marido compulsivamente infiel de Ruth Patchett (Roseanne Barr). Em algum momento, diz a personagem: “Sei que você se casou por bondade e pena”. E, imediatamente depois: “Ruth foi abençoada com as crianças. Elas são seu orgulho e alegria”. Em síntese, a mesma ideia do frentista: Bob estava fazendo um favor a Ruth estando casado com ela. Isso o eximia de toda culpa por ser infiel e tratá-la mal.

o diabo

O resto do filme a gente já conhece: Ruth lhe mostra empiricamente que não concorda com nenhum dos dois, e eles pagam caro pelas desculpas que arrumaram para serem desonestos sem qualquer remorso.

O que quer uma mulher? Ela é o Diabo responde

No artigo “Celibatárias“, publicado na Folha de São Paulo em 2015, o recentemente falecido psicanalista Contardo Calligaris discorreu sobre o desejo feminino conforme estabelecido pelas sociedades patriarcais. No artigo, Calligaris descreve a vida de sua tia Doretta, cujo irmão perdeu a esposa ainda jovem, com um filho pequeno. Com isso, no início do século 20, Doretta, em vez de se casar, assumiu o filho do irmão como se fosse seu, e dedicou sua vida a cuidar de pai e filho.

Doretta viveu numa época em que sequer o desejo feminino era reconhecido. Por isso, como lembra Calligaris, a ideia de felicidade para uma mulher daquela época se resumia a encontrar um marido e constituir uma família. Por isso, para os que defendem esse padrão, Doretta se realizou como mulher. Nas palavras de Calligaris: “Doretta ‘ganhou’ um filho para criar e uma família. Ela, em suma, bem ou mal, realizou sua vocação feminina, não é?” Ou seja, nada muito diferente do que afirmou a Mary Fisher de Meryl Streep.

Hunter

Porém, segundo Ela é o Diabo, não é, não. Mas, embora muita gente possa esperar isto, também não é a realização sexual. Em nenhum momento o filme defende que sexo é uma coisa ruim. Mas, como mostra o desenvolvimento da personagem de Ruth, uma mulher também quer ser dona de seu próprio destino e vencer aqueles que lhe fazem mal. Melhor ainda se for com a ajuda de outras mulheres.

A voz do povo

A crítica não foi generosa com Ela é o Diabo. Alguns textos detratam bastante o filme: alguns são por demais moralistas. Queixam-se dos personagens caricatos, mas pessoas como Mary Fischer e Bob Patchett são de fato ridículas caricaturas, suas vidas se baseiam apenas na imagem pública. Deploram o projeto de vingança de Ruth e do prazer que seu sucesso lhe dá, sem se lembrarem de que Quentin Tarantino há décadas vem fazendo a mesma coisa.  Além disso, ao destruir a vida de seus inimigos, Ruth também destrói seu passado e a pessoa que não percebia que podia ter uma vida muito melhor sem um marido.

O filme se perde, sim, no processo de Ruth no que diz respeito à participação de outras mulheres na sua volta por cima. Por exemplo, Hunter, personagem da queridíssima Linda Hunt, é fundamental para a virada de Ruth, mas, depois que isso acontece, é abandonada. Igualmente, Ruth usa outras mulheres em sua vingança, o que poderia perfeitamente ser evitado. Mas meu incômodo maior é com o título do filme. Por que os roteiristas denominaram diabo justamente aquela que busca justiça contra os demônios que lhe traíram? Ser chamada de diabo, assim como seu análogo “bruxa”, não está muito longe da opinião que gente reacionária tem de mulheres que assumem as rédeas de suas vidas.

Roseanne

Mas, à parte as críticas, os espectadores da minha geração  já consagraram Ela é o Diabo como um dos grandes clássicos vespertinos da Rede Globo. Consultei pessoas mais jovens sobre o filme, e algumas delas não se lembram de tê-lo visto. Forte para elas o buscarem no Youtube: nestes tempos de retrocesso civilizatório e de patriarcado violento, uma lição bem-humorada de feminismo será mais que bem-vinda.


Ficha Técnica
She-Devil (1989) – Estados Unidos
Direção: Susan Seidelman
Roteiro: Barry Strugatz, Mark R. Burns
Edição: Craig McKay
Fotografia: Oliver Stapleton
Design de Produção: Santo Loquasto
Trilha Sonora: Howard Shore
Elenco: Meryl Streep, Roseanne Barr, Ed Begley Jr., Linda Hunt, Sylvia Miles, Elisebeth Peters

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2 comentários em “Ela é o Diabo

  1. Eu adoro esse filme, já assisti várias e várias vezes, hoje mesmo me deu vontade e fui assistir. Assim como vc concordo que a amiga dela foi abandonada quando ela começou a conseguir o que quer. Mas a história está aí, ela quer se vingar do marido e para isso ela usa tudo que tem ao seu alcance… E eu acho bem feito para ele.

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