Guerra à saúde
Última atualização: 11/01/2021
O governo Bolsonaro é um gerador de cavalos-de-pau. São tantas reviravoltas beirando o surrealismo que seus dois anos de governo parecem duas décadas. No meio de tanto caos intencionalmente plantado na rotina dos brasileiros, com absurdos se sucedendo a milhão, é difícil digerir cada um deles individualmente. Não parece, mas foi há exatamente dez meses, em 11 de março de 2020, que o Distrito Federal inaugurou a política de isolamento social no Brasil como forma de frear a pandemia de Covid-19. E não levou um mês para o Presidente da República declarar guerra à saúde por isso.
Um olhar de dentro
Ugo Braga, assessor de comunicação do Ministério da Saúde durante a gestão de Luiz Henrique Mandetta à frente da pasta, fornece um olhar de dentro do “gabinete de guerra” criado para enfrentar o novo coronavírus. Ao contrário do antigo chefe, não tem pretensões políticas. Isso torna seu relato mais desprendido em relação ao que e como diz. Ao mesmo tempo, seu texto jornalístico traz uma dinâmica irresistível à leitura.
Outro ponto positivo do relato de Braga é a condição particular dos profissionais de comunicação, “gueto” do qual faço parte: nós estamos sempre por perto. Sobrevivente da gestão de Michel Temer, Braga já havia prestado serviços para governos petistas e conhece a máquina pública, seus atalhos e suas burocracias. Isso ajuda o leitor a entender como Jair Bolsonaro e seus “bolsomínions” são disruptivos – e, muitas vezes, nocivos – ao funcionamento do país.
Há, por exemplo, o caso da sua primeira interação com Mandetta, para tratar da campanha de conscientização contra a hanseníase: “Olha, hanseníase é a mesma coisa desde os tempos de Jesus. (…) Teve campanha ano passado? (…) Então por que não usa a mesma campanha do ano passado? Aí a gente economiza dinheiro público, que cês gastam milhões com esse negócio de publicidade. Vou logo avisando que essa farra vai acabar, viu?“.
O problema, como Braga explica em seguida, é que a ideia economizaria apenas cerca de 10% da verba e teria impacto quase nulo na população, pois já era “velha”. Na prática, era dinheiro jogado fora.
Saúde em guerra contra o coronavírus
O “filé mignon” de Guerra à saúde é, claro, a maneira como o governo enfrentou o início da pandemia no país. E é preciso dizer: o que Ugo Braga relata surpreende duas vezes. Em primeiro lugar, porque o Ministério da Saúde estava, de fato, abordando o problema de maneira técnica. A crise não tinha precendente, mas a equipe buscava respostas baseadas na ciência. Em segundo lugar, porque essa abordagem técnica foi o grande motivo para Bolsonaro ver em Mandetta um inimigo a ser abatido.
Há – pelo menos, havia – uma estrutura consolidada no Ministério da Saúde capaz de lidar com crises de maneira sistemática. O livro mostra como uma quase liberação acidental do vírus da varíola no Rio de Janeiro em setembro de 2019 acabou motivando investimentos em infraestrutura que nos tornaram capazes de sermos o primeiro país a notar uma movimentação estranha na China. Ou como uma medida ainda anterior tomada por Mandetta para potencializar o atendimento em postos de saúde poderia ter atrasado a superlotação dos hospitais.
Mais importante: Guerra à Saúde mostra uma equipe, entre erros e acertos, tentando evitar mortes. E sendo sabotada por dentro graças a essa escolha.
Bolsonaro declara guerra à saúde
Se o título do livro soa exagerado, a verdade é que ele traduz uma sensação vista por todos que assistiram ao noticiário sem aplicar nenhum filtro ideológico. Bolsonaro sempre viu no isolamento social um inimigo. Principalmente, porque ele afetaria negativamente a economia, que já vinha mal das pernas após o primeiro ano do governo. Isso dificultaria seus planos de reeleição em 2022. Sendo um inimigo, o isolamento social deveria, então, ser abatido.
Ugo Braga conta como, diversas vezes, o trabalho no ministério precisava ser redirecionado para “apagar incêndios”, quase sempre criados por Bolsonaro. Como os sinais trocados, além de atrapalharem a estratégia oficial do próprio governo, colocavam todos sob extremo estresse. Como até secretários “infiltrados” existiam apenas para, aparentemente, relatar ao Presidente o que se passava no lado “inimigo”.
No momento que, para mim, é o mais chocante e nojento de Guerra à saúde, Mandetta relata a sua equipe uma reunião com Bolsonaro:
Como a mesma pessoa que diz aguentar ver mortos sendo carregados diariamente em caminhões pode dizer que não errou nenhuma medida no combate à pandemia?
Autor: Ugo Braga
Gênero: Política e governo, Brasil, Memórias
Primeira publicação: 2020
Edição brasileira: Casa dos Mundos / LeYa Brasil
Número de páginas: 336
Idioma: Português
ISBN: 978-65-5643-044-7
1 comentário em “Guerra à saúde”