Jane Austen e a sexopolítica do conhecimento
Última atualização: 30/08/2021
Razão e sensibilidade, o lindíssimo filme de Ang Lee (1995) recentemente incluído na plataforma Netflix, é a ocasião perfeita para falarmos da escritora Jane Austen (Inglaterra, 1775-1817), autora do romance que inspirou o roteiro premiado de Emma Thompson para o filme. Por trás da história de moças inglesas do passado, há um universo de conceitos e discussões que marcam o nascimento do feminismo no mundo. E esse é um dos motivos para celebrarmos Jane Austen como uma das grandes intelectuais de seu tempo.
Uma das premissas importantes do pensamento feminista é a de que os direitos que nós mulheres temos hoje em todo o mundo resultam de importantes conquistas de mulheres que viveram antes de nós. Muitas delas deram a vida na luta pela diminuição da desigualdade e da violência de gênero.
Ainda hoje, muitas militam em variados campos de luta – a política, a universidade, a economia, a comunidade, as ruas – para que as conquistas alcançadas não se percam. E também para que, nos países onde as mulheres não têm quase direito nenhum, essa situação possa mudar.
Essa premissa fundamenta a necessidade de nós feministas estarmos sempre atentas para lembrar os que nos leem sobre a existência e a vida de mulheres importantes para a causa. Principalmente porque elas já militavam pelos direitos das mulheres muito antes de se começar a constituir esse corpo de conhecimentos hoje denominado Feminismo.
Jane Austen é uma das precursoras do Feminismo
Essa tarefa se torna ainda mais urgente pelo fato de que as feministas de primeira hora sequer se denominavam assim. Contudo, trabalhavam com afinco em campos onde eram praticamente invisíveis. Ninguém lhes dava importância, já que a prerrogativa do conhecimento e da competência profissional sempre foi atribuída aos homens. No entanto, elas existiram, nas ciências e nas artes, e foram muitas.
Jane Austen é uma dessas mulheres. Em sua literatura vibrante e perspicaz, denunciou a condição intelectualmente indigente da mulher inglesa. Entretanto, seu trabalho não se limitou a isso. Em pelo menos duas obras, Orgulho e preconceito e Lady Susan, Jane tratou de mulheres que desafiaram os padrões de comportamento feminino da Inglaterra do período pré-vitoriano.
Duas obras que marcam uma época e um pensamento
Em Orgulho e preconceito, A protagonista Elizabeth Bennett era, como todas as mulheres de sua classe social, refém das leis britânicas de herança. Essas leis permitiam que apenas os descendentes homens herdassem bens imóveis. O temor de se tornarem sem-teto deixava as jovens ansiosas por encontrar um marido que lhes provesse sustento e um lar para morar e cuidar. Essas eram as aspirações máximas das mulheres do tempo de Jane Austen.
Elizabeth recusa essa obrigação rejeitando não apenas um, mas dois pedidos de casamento – um deles do homem mais rico da região. E isso, para a época, era a suprema subversão. Austen demonstra ter plena consciência disso, porque inclui na narrativa um contraponto a Elizabeth, na figura de sua amiga Betsy. Essa personagem manifesta o pensamento das moças que se veem diante de um pretendente. O que mais uma mulher pobre e sem conexões na sociedade fina pode almejar além de um marido para sustentá-la e livrá-la da indigência?
Por sua vez, o conto Lady Susan foi levado ao Cinema com o título Amor e amizade. Nele, Jane Austen apresenta uma personagem que não dispõe de recursos materiais para escapar das imposições patriarcais de sua classe social. Por isso, precisa encontrar formas de sobreviver pelo casamento. Mas a maneira inteligente e consciente como faz isso a torna uma resistente, no sentido Foucaulteano da palavra. É alguém que conhece como ninguém as regras do jogo. Sabendo-se impotente para mudá-lo, busca existir nas brechas das opressivas convenções sociais sem se anular como pessoa.
A exclusão da mulher do espaço público tem raízes históricas
Nessas duas obras, emerge uma questão referente ao próprio trabalho literário de Austen, num tempo e num lugar social em que não havia elementos conceituais para problematizar a condição da mulher. Isso levava invariavelmente todos a repetir o mesmo discurso: às mulheres cabe servir aos homens no espaço doméstico. É bem provável que, se pertencesse a uma outra classe social, Austen seria uma empregada doméstica ou trabalhadora braçal e contribuiria para o orçamento familiar, mas não era o caso. Restava a ela então depender dos proventos do pai clérigo e tutor. E ela fez isso até obter renda pessoal com a publicação de suas obras.
Mas Austen foi uma exceção. De seu lugar social, o cenário que vislumbrava e brilhantemente descrevia se compunha de uma exclusão da mulher dos espaços públicos de pensamento e ação. No campo da literatura, isso consistia na contingência de mulheres não raro terem de publicar seus textos com pseudônimos masculinos, ou como anônimas, caso de Austen. As mulheres de sua classe social e classes mais favorecidas eram excluídas do espaço público e dos círculos de poder decisório, e discriminadas se ousavam questionar sua exclusão. Recebiam uma educação limitada a mimos domésticos como tocar piano e cantar, ler a Bíblia, falar francês e italiano, bordar e suspirar com poesia para moças.
Educadas para o lar
A educação feminina nesses moldes se manteve inafetada pela transformação de pensamento provocada pelo Iluminismo, poderosa corrente filosófica e política (lato sensu) desenvolvida no século XVIII, e que advogava pelo predomínio da razão e pela necessidade de transformação da sociedade pela filosofia e pela ciência. Mas o Iluminismo acabou franqueando apenas aos homens a entrada no campo da transformação do mundo pela aquisição de conhecimento e desenvolvimento do intelecto para tratar das grandes questões da humanidade. As mulheres permaneceram, assim, limitadas às funções de maternidade, cuidado da família e transmissão de valores morais pela criação dos filhos.
A justificativa inventada para isso, como define a filósofa Judith Butler, em seu livro Problemas de gênero, é a de que as mulheres, por determinação biológica, estariam sempre na esfera do irracional, do intuitivo e do mítico. Portanto, não seriam naturalmente aptas às atividades políticas e econômicas da esfera pública e macrossocial.
A sexopolítica do conhecimento é um conceito decolonialista
Em termos decolonialistas, a ideia de Butler pode ser mesclada ao conceito de geopolítica do conhecimento, que permite reconhecer a situação geográfica, em termos globais, de quem está autorizado a pensar. Aos colonizadores brancos do hemisfério norte está concedida a prerrogativa de produzir conhecimento científico e intelectual. Afinal, “está provado que só é possível filosofar em alemão”, como disse Caetano Veloso. Aos colonizados do hemisfério sul, resta a tarefa de hospedar esse conhecimento para a descrição de seus objetos de pesquisa; serão verdadeiras franquias gigantescas de produção em série e em massa do que os colonizadores inventaram.
Analogamente, posso pensar em uma sexopolítica do conhecimento que imperava à época de Jane Austen. Os homens estão destinados à transcendência intelectual por capacidade biológica. As mulheres, por sua vez, precisam contentar-se com as tarefas comezinhas da vida doméstica, já que seus cérebros não são sofisticados o suficiente para produzir pensamentos que valham a pena ser repetidos, quanto mais divulgados.
Evidentemente, a sexopolítica do conhecimento é um conceito que se aplica não apenas à época de Austen. Nesse sentido, basta uma olhada na composição dos grupos de pesquisa, das equipes econômicas e das casas parlamentares de diversos países, inclusive no Brasil. Constatamos que a ciência, a economia e política ainda são majoritariamente masculinas e brancas. Além disso, os homens ainda se julgam no direito de opinar e legislar sobre os direitos das mulheres. Isso vale para temas como aborto, licença maternidade e feminicídio. Fazem isso justamente por acreditarem, como têm feito há séculos, que as mulheres não são capazes de pensar.
Jane Austen não foi a primeira mulher a pensar a subalternidade intelectual feminina
A exposição do tratamento subalterno conferido às mulheres nas obras de Jane Austen encontra uma denúncia mais contundente em outra inglesa que viveu um pouco antes: a escritora e filósofa Mary Woolstonecraft (Inglaterra, 1759-1797), uma crítica leonina do machismo iluminista e defensora da ideia de que a aparente inferioridade intelectual das mulheres provém de uma educação em que lhes são negadas as oportunidades de discussão sobre os conhecimentos que movem a humanidade.
Em 1792, Woolstonecraft publica a obra Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher, argumentando que tanto homens quanto mulheres devem ser educados como seres racionais. Contudo, vítima do seu tempo, Woolstonecraft acabou chamando mais atenção por sua vida amorosa não convencional do que por suas ideias e publicações. Por consequência, isso impediu por muitos anos a divulgação do seu pensamento.
Mulheres gigantes
Os biógrafos de Jane Austen não chegam a mencionar se a autora teve contato com os escritos de Woolstonecraft. O que se sabe é que seus pais queimaram muito do material escrito por ela após sua morte. Assim, jamais saberemos se Austen conhecia as ideias de sua antecessora. E nem se desenvolveu outras opiniões sobre a condição social das mulheres da Inglaterra pré-vitoriana além das que apresenta em seus livros. Mas podemos reconhecer uma identificação entre as ideias dessas duas mulheres, mesmo num tempo em que o pensar era franqueado exclusivamente aos homens europeus.
A nós, hoje, resta colher o que se preservou dos ensinamentos de duas das inúmeras mulheres famosas e anônimas que lutaram pelo direito de as mulheres pensarem, proporem e debaterem ideias e decisões nas instâncias de poder político e econômico. No momento presente, muitas de nós lutamos em todo mundo pela ampliação de espaços de existência plena de mulheres de todas as raças. E, ao estudar a história das ideias que contribuíram para o pensamento feminista, temos reconhecido cada vez mais que, que, ao longo do caminho, temos nos apoiado sobre os ombros de gigantes.
Obrigada por escrever sobre a Jane Austen. Muitos ainda enxergam suas obras somente pelo viés romântico e falham ao deixar de observar a crítica social que ela fazia. Jane Austen não só denunciou o tratamento desigual sofrido pelas mulheres, como também expôs a hipocrisia e superficialidade da alta sociedade inglesa.