Judas e o Messias Negro
Última atualização: 05/03/2021
Situar Judas e o Messias Negro como um filme de temática racial é desconfortável. Embora reconhecê-lo assim possa resgatar a dimensão histórica extremamente relevante dos fatos narrados, há muito mais sendo dito na obra de Shaka King do que a História enquadrada comunica. Para darmos conta da importância do filme, é preciso ampliarmos bastante o conceito de racismo.
Além disso, reconhecer que Judas e o Messias Negro nos obriga a redimensionar a ideia de racismo implica compreender que a tragédia da discriminação racial é muito, mas muito maior do que a História de uma sociedade racista como a estadunidense revela. Deve-se assumir que o racismo é um desejo de preservação de um determinado grupo em detrimento de outros, numa intensidade tal que é capaz de destruir o que o ser humano tem de melhor: o que serviu para que nós, como espécie, perseverássemos em relação a outras espécies ao longo de nossa evolução.
Ou seja: Judas e o Messias Negro mostra que o racismo é capaz de nos destruir como espécie. Ter aprendido isso estendeu minha visão de mundo em sentidos que eu ainda não sou capaz de expressar. Por ora, acredito que a plena experiência de assistir a Judas e o Messias Negro passa necessariamente por esse aprendizado. Nesse sentido, o filme se assemelha ao maravilhoso Projeto Flórida, de Sean Baker: lá, assim como aqui, o espectador que não abrir mão de seus valores conservadores passará batido pela grandiosidade estética e ética do filme.
Judas e o Messias Negro atualiza a história mais conhecida de todas
Penso se não era isso o que o jovem diretor e roteirista Shaka King desejou ao intitular seu filme assim, nos remetendo à história também trágica de Jesus. Em milésimos de segundo, o título nos abre na mente toda a história de outro messias: sua vocação evangelizadora, sua capacidade de agregar, seus opositores, a traição de que foi vítima. Tudo isso nada tem a ver com racismo, em princípio.
Só que não, segundo Shaka King. E concordo com ele em gênero, número e grau.
Poucas obras mostram a capacidade destruidora do racismo como Judas e o Messias negro, porque no filme isso acontece em escala macropolítica. O líder dos Panteras Negras Fred Hampton (Daniel Kaluuya) era o pior tipo de ser humano para uma sociedade marcada pelo individualismo radical, como é a estadunidense. Socialista até os ossos, Hampton era um agregador gigantesco. Heresia das heresias, agregava até gente branca. Com palavras e capacidade de negociar, valorizou o que gentes tão diferentes tinham em comum, e tornou isso muito mais relevante do que suas diferenças. Esse foi seu crime na “Judeia” (que, no filme, é Chicago).
A história de Judas e o Messias Negro nos mostra a absoluta necessidade de líderes agregadores na manutenção mínima do pacto social. No Brasil, sem haver quem possa neutralizar as diferenças entre diversos grupos sociais, corremos o risco de reeleger um homem – um falso messias – que nos arrastará para um regime fascista paramilitar, neoliberal e neopentecostal. Pois é: que falta faz alguém que una os pretos de tão pobres aos pobres de tão pretos.
Judas e o Messias negro nos ensina porque isso está em falta: porque a existência de pessoas assim ameaça um poder hegemônico que se impõe no fio da navalha da civilização.
As vantagens de ser um copo meio vazio
Shaka King é egresso da TV e tem poucos longas-metragens em seu portfólio. Aproveita as vantagens que ser um copo meio vazio, e portanto carregando poucas expectativas, lhe oferece. Cumpriu com louvor a tarefa de narrar a paixão de Fred Hampton. Estão ali, descritos com precisão, a causa legítima pela qual lutar, a perfeita descrição de um verdadeiro líder popular, os apóstolos fieis, a estrutura de poder que ele ameaça, e também seu traidor.
Da mesma forma, os eventos históricos são pertinentemente enquadrados como passos na ascensão de Hampton ao calvário. Há a prisão, a defesa leal dos apóstolos aos lugares sagrados duramente conquistados, e, como grande clímax, a libertação do líder, o anúncio da boa nova e a imediata profissão coletiva de fé à causa. A estupenda sequência da fala a pretos e brancos, assistida de perto, é claro, pelo poder instituído local, é a mais perfeita representação do sermão da montanha, à moda estadunidense.
A menção à passagem do evangelho que o filme mimetiza está presente apenas no título. Não há referência a qualquer religião. Mas as palavras de Fred Hampton e o comportamento coletivo dos grupos que ele lidera remontam aos cultos religiosos evangélicos afroamericanos.
Mas exemplo é o que não falta para Judas e o Messias Negro
A inspiração de Shaka King também não vem de nenhum profeta. São onipresentes em Judas e o Messias negro os ensinamentos que Ava DuVernay compartilhou em Selma (2014). DuVernay ensina como realizar um filme em que as pessoas negras protagonizam suas próprias vidas, sem ser objetos de estudo, nem salvas por gente branca. Em Judas e o Messias Negro, os personagens negros é que planejam e impulsionam os acontecimentos. Os brancos estão ali apenas para reagir, com intensidade igual à ameaça que Fred Hampton representa para eles.
E é nessa escolha narrativa que Shaka King releva sua grande sabedoria em trabalhar com atores que trazem sua história pública e a mesclam aos personagens que encarnam. Isso mostra que, assim como os diretores, os atores também acumulam experiências e aprendizados que transparecem e se revelam em trabalhos posteriores.
A lembrança dos olhos banhados em lágrimas e do corpo paralisado de Chris Washington em Corra!, de Jordan Peele (2017) acentua ainda mais a robustez física e moral que Daniel Kaluuya imprime a Fred Hampton. Impondo seu personagem em cena, Kaluuya deixa para trás a timidez de Washington, mas não parece rejeitar a possibilidade de comparação com seu trabalho anterior. Isso apenas confirma sua versatilidade como ator. Merecidamente, Kaluuya recebeu o Globo de Ouro deste ano de ator coadjuvante por sua marcante atuação. E esse deve ser apenas o primeiro de muitos reconhecimentos.
Judas, o messias negro e Pôncio Pilatos
A questão é se Kaluuya é de fato um ator coadjuvante no filme. LaKeith Stanfield, o Judas, ou melhor, Billy O’Neill, não entrega uma atuação de interesse, o que é uma pena. Seu personagem fica à sombra de Fred Hampton e também de Roy Mitchell (Jesse Plemons), o agente do FBI que o arregimenta. A pálida presença de Stanfield em cena direciona a atenção a um Kaluuya com sangue nos olhos e faca nos dentes, e ao sempre estupendo Plemons.
Plemons repete o registro dissimulado da marcante participação em Breaking Bad. Compreende que não precisa parecer um vilão, já que personifica o grande Mal materializado pelo FBI de J. Edgar Hoover. Sua atuação serena por quase todo o tempo acentua o momento em que, subalterno, emudece diante do famigerado chefe do FBI à época dos fatos do filme. Plemons é o Pôncio Pilatos que King sabiamente excluiu do título, já que não é de gente branca que se trata. Roy Mitchell é o funcionário público, o chefete que delega aos outros o serviço sujo. Ele não precisa mostrar do que é capaz, porque isso todo mundo já sabe.
Na Chicago do século vinte, o Estado burocrático substitui a poderosa armada romana. Não obstante, se consolida como uma das piores formas do Mal, porque desumaniza aqueles a quem deveria atender, proteger e servir. Nada mais apropriado ao racismo estrutural, responsável pela cisão total entre os membros de uma sociedade organizada em diferentes categorias de pessoas. Judas e o Messias Negro descreve, todavia, um lapso dentro do processo histórico que naturaliza essa cisão. Lapso que, pela chance de se repetir, pode nos dar esperança por dias melhores.
Direção: Shaka King
Roteiro: Will Berson & Shaka King
Edição: Kristan Sprague
Fotografia: Sean Bobbitt
Design de Produção: Sam Lisenco
Trilha Sonora: Craig Harris e Mark Isham
Elenco: Daniel Kaluuya, LaKeith Stanfield, Jesse Plemons, Dominique Fishback, Ashton Sander & Martin Sheen
Sintetizou de forma magnífica a possivel escolha do título do filme e, com sua crítica, que denucia uma das formas de quebra do pacto civilizatório que nos compromete como espécie, me fez lembrar um poema que escrevi que tem como pano de fundo essa luta por uma verdade que conserva nossa humanidade.