‘O Iluminado’ e o problema da adaptação
Última atualização: 06/02/2021
O Iluminado é um livro de horror publicado por Stephen King. O Iluminado é também um filme de horror dirigido por Stanley Kubrick. E, olha só, O Iluminado ainda é uma minissérie roteirizada por Stephen King e dirigida por Mick Garris. Além de xarás, Os Iluminados partem da mesma premissa: a história de um menino isolado com seus pais em um hotel sobrenatural. A trama do trio é tão similar que aproveito para citar uma só sinopse (a do livro, que serve também às outras duas).
Mas, apesar das semelhanças, as três obras estão longe de ser a mesma coisa. As diferentes abordagens sobre uma mesma trama revelam muita coisa sobre a natureza das adaptações. Afinal, um livro e um filme se comunicam de formas diferentes, então é natural que a história se modifique quando vai de uma linguagem a outra. O Iluminado é uma ótima forma de ilustrar essas diferenças, especialmente porque a minissérie de 1997 foi feita para “corrigir” o filme de 1980. São duas obras antagonistas, mas que nasceram do mesmo texto. Vamos, então, analisar as divergências entre as duas versões.
O filme e a minissérie
Stephen King nunca escondeu o seu desgosto com a versão que Kubrick deu à história de O Iluminado. Aliás, não foram poucas as ocasiões em que ele comparou o filme de Kubrick a “um carro lindo, mas sem motor”. A comparação servia para ilustrar o maior problema de King com a versão Kubrickiana: o desenvolvimento dos personagens. Em especial, o desenvolvimento de Jack Torrance, personagem com quem King, que também enfrentou o alcoolismo, tem uma ligação especial.
Foi para não repetir o erro que King não só roteirizou como supervisionou de perto a minissérie, que foi lançada 17 anos depois do filme de Kubrick. Ele buscou, com a série, fazer o oposto de tudo que havia sido feito no filme. Uma métrica que ilustra bem a diferença entre as duas obras é o tempo de duração: enquanto o filme se resolve em 2 horas e 26 minutos, a série leva 4 horas e trinta e três minutos para contar a sua história. Faz sentido que a série demore mais, já que ela tenta transmitir todas as informações do livro no formato audiovisual.
E, não tenham dúvidas, boa parte do tempo da minissérie é preenchida com o desenvolvimento do personagem de Jack Torrance, o principal incômodo de King. A série, ao contrário do livro, não se define como horror pura e simplesmente; há muito drama na luta de Jack contra o vício. De qualquer forma, faz sentido que a série seja assim. Como eu disse, ela foi roteirizada e supervisionada por Stephen King. E Stephen King é, antes de tudo, um escritor.
O escritor e a minissérie
Até o lançamento da série, Stephen King já tinha publicado dezoito livros. Portanto, não é exagero dizer que ele já tinha uma carreira na literatura quando enveredou pelo audiovisual. Para criar a minissérie, ele utilizou as ferramentas do repertório que possuía: o literário. É por isso que os episódios estão cheios de ferramentas e recursos que são típicos da literatura. Quer um exemplo? Nos primeiros doze minutos de filme assistimos a dois flashbacks bastante descritivos (o segundo é, inclusive, acompanhado de uma narração em off). Não há nada de errado, por assim dizer, com o uso de flashbacks. É só que eles servem para imitar o mesmo recurso de saltos no tempo que King utiliza no livro.
A diferença é que no papel esses saltos acontecem entre parágrafos; na minissérie, entre sequências. Ou seja: mais que uma adaptação, a série é uma transposição do livro, com a utilização dos mesmos recursos em linguagens diferentes. Assim como o livro, a minissérie de King serve às palavras, e as imagens servem apenas para mostrar o que é dito. Kubrick, por outro lado, sabe que, como já cantava Marisa Monte, palavras não são tudo.
O cineasta e o filme
Quando fez O Iluminado, Kubrick já tinha dirigido dez filmes. Para muitas pessoas, eu nem precisaria fornecer essa informação para comprovar a sua bagagem cinematográfica; a simples menção ao nome ‘Stanley Kubrick’ é suficiente. Não há dúvidas de que, se o cinema é uma linguagem, Kubrick é muito mais fluente nela que Stephen King. Na prática, isso significa dizer que Kubrick conhece os atalhos (ou as gírias, se preferir). Quando falamos em atalhos, falamos de um caminho mais curto para se chegar a algum lugar. E aonde o filme, a minissérie e até mesmo o livro querem chegar?
Ao horror. O Iluminado é sempre uma história de horror. Por isso não se engane, tanto o filme quanto a série querem te assustar. E, entre os dois, é fácil ver quem tem mais sucesso nessa missão. Se há alguma dúvida, sugiro a seguinte pergunta: você preferiria se hospedar no hotel idealizado por King ou por Kubrick?
Há na crítica de Stephen King ao filme de Kubrick uma falha na compreensão do que faz um filme de terror funcionar. King tem um foco bastante claro em passar as informações ao espectador; e faz sentido que seja assim – nos livros, informações são tudo que temos. É dessa necessidade de explicar as coisas que vêm suas críticas ao desenvolvimento de personagens de Kubrick. Mas o que acontece é que King não entende que o filme não precisa atender à progressão clássica de um personagem.
Porque Kubrick pega os atalhos. A loucura do personagem de Jack Torrance, que está presente o tempo todo no filme, não é uma falha no desenvolvimento de personagem. Ela serve para manter o espectador em um estado de tensão contínua. Há um propósito para a interpretação de Jack Nicholson que atende à intenção principal de um filme de horror: assustar. Causar estranheza. Kubrick sabe que as informações são prescindíveis, por isso o foco na ambientação. E não é preciso esperar muito para ver essa diferença de abordagem. Na verdade, basta assistir às primeiras cenas.
Os inícios
Abaixo, você assistirá à introdução da minissérie de Stephen King.
Nessa cena, há uma referência clara à violência. Os créditos rolam enquanto ouvimos uma pessoa implorando por sua vida para, ao final, ser ceifada por um machado. A violência, apesar de estar apenas no áudio, é bastante explícita. Aliás, é interessante que é justamente o escritor quem escolhe iniciar sua série com uma violência que é falada, mas não mostrada. As palavras são, portanto, o disparo da série de Stephen King.
Agora, vamos assistir à introdução do filme de Stanley Kubrick.
Aqui, não há qualquer menção à violência, explícita ou implícita. Pelo contrário, vemos paisagens bonitas, e um carrinho amarelo subindo uma montanha. Nada para se temer, certo? Errado. Basta assistir à cena para sentir quão aterrorizante ela é. O medo está na música, que só poderia ser definida como uma canção de ninar do inferno. Eu até tentei explicar por que a música é assustadora, escrevi várias linhas sobre o compasso lento, os sons graves… Mas apaguei todas elas. Porque nenhuma descrição parece suficiente. E é aí que está a resposta do problema.
O medo causado pela cena de Kubrick é difícil de traduzir em palavras. Enquanto na minissérie de Stephen King o horror é descrito, no filme de Kubrick ele é indescritível. É nesse momento, a partir dos primeiros minutos, que Kubrick demonstra que não usará as ferramentas da literatura. Elas não são adequadas. Na verdade, elas nem mesmo são necessárias. Kubrick entende que, para que um filme assuste, elementos como música, cenário e atuação têm mais peso que as palavras, os diálogos, as descrições. Kubrick entende que, para que um filme assuste, ele precisa primeiro ser um filme.
O final
Stephen King diferencia a sua versão e a de Kubrick pelo calor; segundo ele, sua minissérie é “quente”, enquanto o filme de Kubrick é “frio”. Com toda a humildade que essa opinião audaciosa me permitir, discordo de King. Acredito que “literária” e “cinematográfica” seria um cotejo mais adequado. Porque a minissérie de Stephen King é uma transposição, e o filme de Kubrick é uma adaptação. Kubrick não transporta o livro O Iluminado, ele o adapta. Ele faz uso, portanto, das ferramentas que são próprias do cinema para contar a sua versão da história. Não aponto essas diferenças como um demérito de King: cinema e literatura são campos absolutamente distintos, e faz sentido que um escritor recorra às ferramentas do campo literário, porque são elas que compõe seu repertório.
Não há uma obra certa e outra errada; nem arte nem linguagem devem ser pautadas nesses termos. Ainda que o sucesso das duas versões possa ser medido (e comparado), isso não deve permitir a conclusão de que só uma delas está correta. O que se entende é que, para se adaptar um material, é preciso antes conhecer a linguagem da mídia-destino; neste caso, a linguagem cinematográfica. Uma linguagem é uma forma de comunicação, que envolve códigos e ferramentas próprias que demoram para ser entendidos. Para que se consiga utilizar os atalhos, é preciso antes ser fluente na língua. E é esta a vantagem de Stanley Kubrick.
Direção: Stanley Kubrick / Mick Garris
Roteiro: Stanley Kubrick / Stephen King
Edição: Ray Lovejoy / Patrick McMahon
Fotografia: John Alcott / Shelly Johnson
Design de Produção: Roy Walker / Craig Stearns
Trilha Sonora: Rachel Elkind / Nicholas Pike
Elenco: Jack Nicholson, Shelley Duvall, Danny Lloyd / Steven Weber, Rebecca de Mornay, Courtland Mead
Belo texto, e concordo em alguns pontos… O filme de Kubrick tem coisas ótimas, e outras nem tanto. O casal central não parece funcionar como casal em momento nenhum da história, e me parece que King tem razão no sentido que Jack Torrance parece “louco” desde o princípio, enquanto que no livro isso acontece gradualmente… Por isso prefiro a minissérie…mas reconheço que o filme de Kubrick é muito bom. Como aliás é o “Doutor Sono” lançado recentemente…