O Planeta dos macacos e as reflexões sobre o tempo
Uma questão de tempo
Existem algumas frases de efeito que repetimos ao longo da vida sem nos darmos ao trabalho de compreender de fato o que elas significam. Se nos dedicarmos a essa tarefa, veremos que na maior parte das vezes elas não têm o menor sentido. Uma dessas frases bobas é a que diz, sobre alguém ou algo, que esse alguém ou algo está à frente do seu tempo.
Com efeito, essa frase não tem sentido porque considera todas as coisas como estando em um contínuo temporal unidirecional e, digamos, para a frente, como se fosse essa a única maneira de pensarmos sobre o tempo. E não é apenas isso. Essa ideia parte da falsa suposição de que, assim como o tempo, as pessoas todas também estão se movimentando numa mesma direção, e numa mesma velocidade.
Essa ideia é falsa porque, sobretudo, é contraditória. O tratamento do tempo como algo que se desloca, se direciona somente para a frente e leva as pessoas e as coisas a inexoravelmente se movimentarem da mesma maneira, traz algo de estagnação e imutabilidade. É como se não pudéssemos fazer nada além de nos movermos de forma igual. E, assim, pensar de forma igual, acreditar de forma igual. Nessa perspectiva, a realidade é sempre uma só, e nosso pensamento, por sua vez, nunca muda. Nada mais equivocado.
E fica mais equivocado ainda quando pensamos que muito do que se conquista no presente pode ser perdido no futuro, porque vivemos em um eterno ciclo de ampliações e retrações. Em grande medida, isso torna nosso presente uma repetição de antigas formas de viver e pensar, algumas melhores, mas outras bem piores do que as que temos agora.
O passado no presente
As leis de diferentes países mostram esse paradoxo. Em 2016, o governo brasileiro sancionou uma lei que permite às pessoas transgênero utilizar seu nome social no CPF. Entretanto, quase ao mesmo tempo, o ex-presidente Donald Trump proibiu que pessoas transgênero se alistassem nas forças armadas estadunidenses. Mais tarde, essa proibição felizmente foi derrubada por Joe Biden. São fatos simultâneos mas antagônicos: faz-se um movimento importante na história e, ao mesmo tempo, revoga-se uma conquista social. Anda-se para frente e para trás.
Ainda assim, é também é possível pensar que o aparente avanço no Brasil é na verdade uma conformação legal a uma das inúmeras formas possíveis da relação do ser humano com o seu gênero, algo que existe desde os primórdios da humanidade. Por sua vez, o retrocesso no governo Trump foi a negação, por determinados grupos, da legitimidade dessa prática. Como já vimos várias vezes, nada impede que num futuro próximo tudo isso troque de lugar.
Um outro fato concreto: já faz duas eleições para presidente no Brasil que estamos tendo de escolher, na verdade, entre camadas temporais que nada têm a ver com o século XXI. O que temos encontrado no cardápio de candidatos são pessoas que se situam ou na revolução industrial, ou nas capitanias hereditárias, ou no velho testamento. Não porque não haja políticos antenados com o século XXI. Mas é que, para a nossa desgraça, neste momento eles andam com a popularidade em baixa, por razões que bem merecem outro texto.
As camadas de temporalidade
Avançarmos ou retrocedermos, muito mais que um fato, é um sentimento. Costumamos imaginar que estamos avançando em ideologias, leis e tecnologia. Mas também temos certeza de que o mundo está decadente, que a sociedade está deteriorando, que a violência está aumentando, que a linguagem e a Arte estão empobrecendo. Por isso, já faz tempo que alimento a convicção de que, em vez da horizontalidade do tempo, o que de fato existe é a verticalidade das temporalidades. Camadas sobrepostas de temporalidades: passado, presente e futuro num só espaço. Essa ideia não é original; muitos historiadores já pensam assim.
Por consequência, ao se reconceptualizar o tempo, necessariamente se há de reconceptualizar também o espaço. Se não se diferenciam os tempos, também não se poderá falar de espaços diferentes, em que se imagina o que entendemos como aqui, como real, em comparação com um outro lugar supostamente irreal e inverossímil.
Tempo e espaço são invenções humanas
Não é a concretude física que legitima as realidades, mas sim suas condições de pensabilidade. Para quem gosta de Arte e de falar sobre Arte, penso que não há outra alternativa para falar do tempo e do espaço senão tendo em mente a coexistência vertical das camadas do que vivemos e do que ainda viveremos. De fato, o que imaginamos como estando em outro tempo e lugar é algo que já está aí, pelo menos em ideias.
O lançamento de Planeta dos macacos: o reinado (2024), de Wes Ball, retoma um conceito que está no Cinema e na mente das pessoas desde pelo menos O planeta dos macacos (1968), de Franklin Schaffner, adaptação do livro de Pierre Boulle publicado em 1963. É notável que tantos filmes já tenham sido lançados e ressignificados a partir da obra original.
Isso prova a importância histórica de um filme que provou seu frescor permanente não apenas no que traz de problematizador sobre o ser humano e a sociedade ocidental. Esse frescor está nas sequências que motivou na TV e no Cinema, às vezes com menor qualidade, às vezes com exemplares de importância comparável, caso da mais recente trilogia estrelada por Andy Serkis (2011, 2014 e 2017).
Este texto busca justificar a potência narrativa de O planeta dos macacos, que o mantém em nossas mentes até hoje e motiva mais um filme este ano. Uso para isso o fato de que o tema dessas obras todas se ajusta soberbamente à percepção de que tempo e espaço são, em grande medida, invenções humanas.
Misoginia…
Pode parecer paradoxal, mas o primeiro filme O planeta dos macacos traz muito mais elementos da discussão em Ciências Sociais e Filosofia do século vinte e um do que a trilogia completada em 2017. Esta, por sua vez, aborda um tema filosófico atemporal, surgido nos primórdios da humanidade, quando começamos a pensar seriamente sobre nós mesmos. É a pergunta sobre o que nos torna humanos e únicos em relação às espécies que compartilham conosco mais de 95 por cento do genoma.
O filme estrelado por Charlton Heston, entretanto, abarca temas que atualmente são caros a quem problematiza as perspectivas identitárias de entendimento das estratificações e preconceitos sociais. Lá está o macho estadunidense heterossexual branco de olhos azuis. Ele inicialmente se submete ao domínio dos que naquela sociedade lhe são superiores hierarquicamente. Mas gradativamente se impõe como líder estratégico sobre todos, reafirmando a excelência de sua genética.
O republicano Charlton Heston foi a perfeita escalação para o cético Taylor, astronauta que partiu numa viagem espacial sem volta por desilusão com o mundo ocidental, incluindo aí as mulheres, às quais se refere com desprezo. Sobre sua colega de tripulação, ele diz: “Garota adorável. A carga mais importante que trouxemos. Ela seria a nova Eva, com nossa ajuda, claro”. Cético, mas, como se espera de um macho alfa sedutor, exercendo fascínio até nas fêmeas que não são de sua espécie.
A misoginia também está no descrédito dado às opiniões femininas. O casal de chimpanzés cientistas Zira (Kim Hunter) e Cornelius (Roddy McDowall) precisa provar diante dos juízes a veracidade de suas descobertas sobre uma suposta civilização humana antiga. Zira, em mais de uma ocasião, incita Cornelius a fornecer as respostas e testemunhos que os salvarão da prisão por heresia. Mas, diante dos juízes, permanece em silêncio, mesmo tendo sido co-participante das pesquisas.
… e preconceito social
Está lá também a rígida estratificação social que separa em diferentes classes as diferentes espécies de primatas. Todos eles são iguais, mas alguns são mais iguais que outros, como pontua o próprio Taylor. No topo da pirâmide, os orangotangos, que se atribuem a elaboração, promulgação e aplicação de leis. Num estrato intermediário, os chimpanzés, com poderes limitados. E, na base, os gorilas, que apenas seguem ordens. Cada grupo usa, à semelhança das mulheres de Gilead em The Handmaid’s Tale, roupas de cores diferentes, que salientam mais ainda seus lugares sociais.
Está lá também a religião que alinha todas as outras ideias, elevando a espécie que a inventou à condição de povo escolhido. Ratifica-se com explicações míticas a diferenciação que sustenta a estrutura social. Sacramenta-se e promete-se a felicidade eterna àqueles que a abraçarem. Da mesma forma, condena-se à danação presente e futura quem a questionar.
Evidentemente, O Planeta dos Macacos de 1968 não é o único filme das décadas intermediárias do século XX a suscitar problematizações que hoje ocupam largo espaço nas Ciências Sociais e na Filosofia. Esses campos cada vez mais se voltam para si mesmos e se repensam, reconhecendo que o mundo conforme o entendemos é apropriado por um determinado grupo de pessoas para ser imposto como verdade absoluta.
Assim, o mundo hegemônico do senso comum é aparentemente um mundo imutável, universal e naturalizado. Seus discursos se vendem como sagrados. Mas, após leitura atenta, se relevam elaborados sob a ótica de quem se colocou no centro de uma categoria e foi relegando à margem, por diversos meios, quem não cabia em seus padrões.
Me pergunto em que medida a falta de percepção de muitas pessoas sobre essa naturalização faz com que elas desejem o passado. E em que medida o desejo coletivo pelo passado ocasione, no fim das contas, uma revolução que não é para o novo, para o futuro, mas sim para trazer de volta tempos de barbárie cujos horrores já teríamos de ter superado, como acontece em O planeta dos macacos.
Distopias são como espelhos
O planeta dos macacos é o exemplo perfeito de realidade distópica. O distópico é sempre aquilo que funciona como um espelho, para que, através da invenção de uma alteridade espácio-temporal, enxerguemos a nós mesmos sem a camuflagem e as justificativas do nosso contexto. Reforça-se também a ideia de que não existe qualquer realidade objetiva, que seja mais básica, mais real e mais material que as outras. Todas as realidades que o ser humano pode pensar existem por si e são igualmente legítimas a partir do momento em que são pensadas.
A distopia em O planeta dos macacos se baseia na manutenção dessa estrutura social e civilizatória, apenas invertendo as posições e colocando no centro da categoria aqueles que a Biologia situou na periferia. Mas as bases que a sustentam continuam as mesmas.
Está-se falando de um mesmo mundo, que existe dessa forma há séculos, e que alguns sempre foram capazes de ver com clareza, porque se situam numa camada de temporalidade diferente da que está a maioria das pessoas. Da mesma forma que, ainda hoje, com tantas falas relevantes sobre isso, muitos ainda são incapazes de ver, sob o verniz das verdades absolutas, a imposição discursiva de um determinado grupo sobre todos os outros. Para muitos, o presente como ideia, como conceito, não existe.
Temas complementares
Não vejo como problema as diferenças filosóficas entre O Planeta dos Macacos de 1968 e a trilogia encerrada em 2017, que aliás acho magnífica, técnica e tematicamente. Ou, em outras palavras: da mesma forma que O Planeta dos Macacos não é um filme à frente do seu tempo, a trilogia não está desconectada com o momento contemporâneo. O fato de a trilogia aparentemente não retomar os problemas que o filme de 1968 aborda não subverte a filiação com os questionamentos advindos da hipótese (e do desejo…) de dividirmos o planeta com outra espécie de cognição análoga à nossa.
Nesse sentido, há duas questões cruciais. Uma é a hipótese de haver cognição desenvolvida em outra espécie que não seja o Homo sapiens. Outra é como seria uma sociedade construída a partir dessa situação. Não me surpreenderei ver essas duas questões presentes e articuladas em outros filmes no futuro. O Cinema já nos forneceu inúmeras ocasiões para pensarmos sobre as contradições advindas do fato de que somos iguais a todos os outros de nossa espécie, mas ao mesmo tempo somos diferentes entre nós. Essa constatação é que torna toda a criação ficcional sobre O Planeta dos Macacos, em conjunto, uma narrativa extraordinária, cuja importância a linguagem do Cinema evidencia ainda mais.