Pieces of a woman

Última atualização: 21/04/2021

O parágrafo abaixo é um trecho do artigo do jornalista Dodô Azevedo sobre o documentário Alvorada, exibido na mostra É tudo verdade deste ano. Ele encerra duas profundas sabedorias: a de Dilma Roussef e a do próprio Dodô, ao destacar, diante de tantos outros, este imprescindível recorte. A este texto, o momento descrito por Dilma Roussef diz também muito sobre o que sustenta os conceitos e conteúdos de Pieces of a Woman.

Em certa cena de Alvorada, Dilma Rousseff comenta que não é pessoa de se desequilibrar emocionalmente. Desde pequena. E que desde pequena sofria com o fato de não entender porque as pessoas se desequilibravam. Descobriu que tinha ela que aceitar que “todo mundo em algum momento se desequilibra”. Tinha ela que, “para poder amar as pessoas, tinha que aceitar o fato de que elas se desequilibram”. Parecia Dilma, serena, perdoar o desequilíbrio do brasileiro que bateu panelas em 2015 sem se informar com inteireza do que estava acontecendo nos bastidores do poder. Parecia Dilma entender que uma hora não só as pessoas, mas todo um país se desequilibra em algum momento.

Superando a primeira impressão

Assisti a Pieces of a woman bastante tempo depois de seu lançamento no Brasil pela Netflix. Isso aconteceu porque o que eu ouvia de amigos cinéfilos sobre ele era algo que não acalmava meu receio de se tratar de mais um filme-fetiche que já vimos tantas vezes – um daqueles filmes que satisfazem o desejo dos diretores de retratar mulheres sofrendo física e psicologicamente.

Em meu temor, sequer tomei a iniciativa de saber algo mais do filme além do fato de que, por ele, Vanessa Kirby levou o Copa Volpi de melhor atriz no Festival de Veneza de 2020. Na verdade, saber qualquer coisa sobre Pieces of a woman já me deixava alerta, mas, após ver o filme, reconheço que eu deveria pelo menos ter checado sua ficha técnica.

pieces of a woman

Se tivesse observado, teria visto que Pieces of a woman é uma realização do diretor húngaro Kornél Mundruczó, que, em dupla com a roteirista também húngara Kata Wéber, é responsável por pelo menos dois outros filmes muito acima da média: Deus branco (2014) e Lua de Júpiter (2017).

Agora sabedora desse precedente, posso afirmar que o excepcional filme a que assisti e sobre o qual escrevo agora não é um golpe de sorte. Pelo contrário: é, sim, mais uma obra de uma dupla que já provou estar muito superior ao trivial. Em seu trabalho mais recente, seu diferencial começa pelo engano a que seu título nos leva.

Não confie nas aparências de Pieces of a woman

O título Pieces of a woman – “pedaços de uma mulher” – sugere que a protagonista se fragmenta diante de uma realidade trágica. Apesar disso, o que vemos na tela é outra coisa: vemos as pessoas se desequilibrando em torno de uma mulher que, como Dilma Roussef, as ama, e por isso aceita seu desequilíbrio.

Porém, a ideia de pedaços também pode ser congruente com um enredo que nos ajuda pouco a pouco a construir uma certeza, depois de termos nossas expectativas baseadas em estereótipos sobre o feminino e a maternidade completamente negadas.

pieces of a woman

O comportamento estável de Martha, a mulher no centro de tudo, inicialmente dá a impressão de superficialidade. Com isso, seu estranhamento diante do marido e da família, que lhe cobram ações congruentes com os padrões sociais do patriarcado, nos sugere de pronto a imagem de um castelo de cartas que em algum momento desmoronará.

Porém, ao invés disso, o que acabamos tendo diante de nós é um quebra-cabeça que pouco a pouco vamos montando. Ao fim, poderemos compor um todo integrado e estruturado pela oposição entre, de um lado, pessoas que se desequilibram, e, de outro, alguém que as ama e aceita que elas se comportem assim. O que não significa, ao fim do filme, um retorno ao que havia no início dele.

Uma arena em que não há vencedores nem perdedores

Mundrukzó e Wéber encadeiam com precisão o gradual descontrole das pessoas ao redor de Martha, que insistem cada vez mais na recusa em reconhecer que ela não agirá conforme eles esperam. Uma das sequências-chave, quando estão todos juntos, apresenta o ápice desse conflito. Nela, o plano-sequência se constrói com a câmera girando em torno do cenário. O movimento circular traz a sensação de labirintite, de perda de lucidez.

O constante movimento passa por todos, mas sempre volta a Martha. Com isso, transforma-se em imagens a dinâmica perfeita do imenso esforço da família para manter a ilusão de uma tênue paz. A família lutando inutilmente com unhas e dentes para ignorar o rinoceronte na sala, sendo que esse rinoceronte é a própria Martha.

pieces of a woman

A crença de Mundrukzó e Veber no poder narrativo da oposição entre Martha e sua família – equilíbrio e desequilíbrio que se alimentam mutuamente – é tão grande, que eles se dão ao luxo de propor um clímax sem qualquer alarde, mas com uma intensidade luxuosamente preparada ao longo do filme pela atuação de Vanessa Kirby.

O clímax desagua de uma maneira intimista, mas mesmo assim, ou por isso mesmo, absolutamente arrebatadora. É um clímax que não se amarra como catarse típica, mas confia na cumplicidade do espectador de chegar a ele junto e ao mesmo tempo em que a personagem chega.

Pieces of a woman se completa com o trabalho de uma grande atriz

E é nesse clímax que concluímos que a maior contribuição de Vanessa Kirby para o trabalho de Mundrukzó e Wéber foi a de ter realmente compreendido que se trata de um filme sobre uma lucidez que se mantém e se consolida justamente quando todos em torno já perderam o rumo de si mesmos, mas nem por isso se tornaram menos merecedores de amor.

pieces of a woman

Por todo o filme se mantém a recusa de Mundrukzó e Wéber em seguir pelo caminho fácil de manipular as emoções do espectador. Diretor e roteirista não entregam, assim como Martha não fez, aquilo que ele deseja. Essa negativa vai até o final, e se materializa mais uma vez no discurso final de Martha. Acertadamente, sua fala carece de uma elaboração linguística mais sofisticada e segue num caminho oposto ao panfletarismo. De fato, isso o tornaria absolutamente incongruente com o comportamento da personagem do longo do filme.

Martha não é de expressar linguisticamente seus sentimentos de maneira extensiva e  intelectualizada. Mas, mesmo assim, o que vemos em sua fala é a materialização de um sentimento genuíno e produto de reflexão profunda de um ser humano que, diante da dor incomensurável, conseguiu manter sua sanidade mental por meio da capacidade de reconhecer a dor dos outros. O que, em grande medida, é o mesmo que amar.


Ficha Técnica
Pieces of a woman (2020) – Estados Unidos
Direção: Kornél Mundruczó
Roteiro: Kata Wéber
Edição: David Jancsó
Fotografia: Benjamin Loeb
Design de Produção: Sylvain Lemaitre
Trilha Sonora: Howard Shore
Elenco: Vanessa Kirby, Shia LaBeouf, Ellen Burstyn, Iliza Shlesinger, Benny Safdie, Molly Parker, Sarah Snook

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