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‘Projeto Flórida’ e a grandeza da maternidade

Última atualização: 09/05/2021

Assistir a Projeto Flórida, de Sean Baker, é assistir a dois filmes de gêneros distintos ao mesmo tempo.

Um filme, descritivo, quase um documentário, apresenta as férias escolares de uma menina chamada Moonee (Brooklynn Prince). Ela mora com a mãe num motel em Orlando, na Flórida. Estão lá os espaços em que ela se movimenta, as pessoas com quem convive, as coisas que gosta de fazer, as brincadeiras inocentes, seus amigos mais queridos e a convivência com a mãe.

As escolhas artísticas de Baker para o filme giraram em torno do que é o olhar de uma criança para o mundo. Com efeito, a câmera está à altura de seus olhos. Há muita cor em tudo e muitos movimentos de lá para cá, em plena exploração do lugar onde mora.

Outro filme, narrativo, apresenta a história de sua mãe, Halley (Bria Vinaite). A personagem mergulha progressivamente no desespero da miséria na nação mais rica do mundo, que traiu sua promessa de proporcionar prosperidade e paz aos europeus brancos que chegaram e se apropriaram de tudo por lá. Assistindo à projeção, acompanhamos as ações cada vez mais extremas de Halley para sustentar Monee e manter sua guarda.

Projeto Flórida

É evidente que ambas se amam e adoram a companhia uma da outra. Mas é evidente também a precariedade de sua situação. A miséria obriga Halley a praticar pequenos golpes, a mendigar e a se prostituir, tudo para impedir duas coisas: que Moonee fique sem um teto, e que ambas se separem.

Sabemos que, em algum momento, esses dois filmes irão se cruzar. Quando isso acontece, a descrição de Moonee acaba, e a complicação de sua vida começa. A leitura mais relevante desse cruzamento é a de que ele não deveria ter acontecido, embora fosse inevitável.

O amor em tempos miseráveis

Salta aos olhos que Halley vive exclusivamente para Moonee, e para preservá-la de ficarem sem teto e sem comida no dia seguinte. O sucesso dessa empreitada, que, típico das narrativas que se complicam, inclui decisões cada vez mais difíceis, fica evidente justamente no fato de que a vida de Moonee é essa descrição sem percalços que acompanhamos por quase todo o tempo do filme.

Diante da perspectiva de ficar sem ter nem o que comer (e muitas vezes deixando de comer para que a filha se alimente), impondo a si mesma doses pesadas de violência e degradação moral, e trabalhando duro, um dia de cada vez, para que Moonee durma mais uma noite sob algum teto, Halley se revela uma mãe extraordinária, no nível das grandes e trágicas mães da história da Literatura e do Cinema.

Projeto Flórida

A construção sofisticada da relação entre Halley e Moonee resulta em um excepcional filme sobre a maternidade. Ela está ali num sentido íntimo, do afeto que une mãe e filhos, e também no sentido do que é ser mãe, neste tempo atual e, desconfio, em todos os outros. Esse sentido está presente nas dificuldades de muitas mulheres que criam seus filhos sem os pais como companheiros. Também está na angústia de pertencerem a uma classe social que não conta com as mesmas chances de vida de quem está nos estratos sociais superiores. Igualmente, está nas consequências de estarem à mercê de um Estado que, sob o pretexto de proteger, acaba produzindo mais sofrimento e solidão. E, finalmente, está na impossibilidade de construírem para si uma vida pessoal, uma vivência, já que empregam todo o seu tempo nos esforços de sobrevivência imediata.

Projeto Flórida não faz concessões

Muitas obras de ficção tratam de mães grandiosas e desprendidas num grau que atinge o desumano. A primeira que me vem à mente é Fantine, personagem de Os Miseráveis, de Victor Hugo. Fantine era mãe solteira na França do século 18, e por isso foi demitida da fábrica onde trabalhava. Por isso, entrega a filha Cosette aos Thénardier, um casal de pilantras que extorquem seu dinheiro sob o pretexto de sustentar a criança, que exploram como escrava. Para manter a filha em boas condições materiais, Fantine vende o que tem – os cabelos, os dentes e a si mesma. Quando o benfeitor Jean Valjean finalmente a encontra, a pobre moça já agoniza em tuberculose. Seu último apelo em vida é o de que a filha esteja bem.

Halley poderia desaparecer entre as inúmeras personagens maternas da ficção, a grande maioria sempre abnegada e disposta a sacrifícios. O que impede isso de acontecer é o elemento que confere a genialidade, a ousadia e a coragem que torna Projeto Flórida o melhor filme de sua década. Sean Baker esmerou-se em construir uma personagem absolutamente fora dos padrões tradicionais de mãe. Não fez, em nenhum momento, qualquer concessão ao espectador para que ele se sinta menos desconfortável com o que está vendo na tela.

o motel

A grande competência de Halley é a de sustentar e preservar o amor poderoso que ela e a filha nutrem uma pela outra. Esse amor se mantém sólido mesmo circundado por uma realidade se esfacelando a seu redor. Ele dá a Halley a consciência de que a segurança e felicidade de Moonee, materializadas numa vida em que só existe a descrição, estariam garantidas sob sua guarda. E também de que a aparente proteção institucional que pode afastar a menina de si só traria traumas e sofrimento.

Para fugir ao estereótipo é preciso coragem

Halley é tão apta como mãe que Moonee vive uma infância cheia de poesia, alegria e cor. Além disso, não faz ideia de cada infortúnio que se anuncia toda vez que alguém bate à porta do quarto de motel em que mora com a mãe. Halley não pensa no futuro para além da semana seguinte, porque essa preocupação também não ocupa a mente da Moonee. E também, em vista do presente trágico em que se encontra, pensar no futuro é ruim demais.

Aparentemente, contudo, Halley é uma moça imatura, irresponsável, inconsequente e incapaz de reconhecer erros e aprender qualquer coisa. Não consegue ser grata aos que a ajudam nem sustentar relações pessoais e profissionais. Todas as suas ações se encaminham para que não sintamos por ela qualquer simpatia. Aliás, muitos devem desejar que a fofa e alegre Moonee saia de sua guarda, e que alguma família a adote. Assim, ela teria limites de comportamento, uma alimentação que não se restrinja à junk food, um lar maior do que um quarto com banheiro, e algo para fazer nas férias além de perambular por aí sem ter o que fazer.

Halley é uma personagem quase repugnante, em aparência e em ações. Quanto a isso, muitos pontos devem ser computados para a atriz lituana Bria Vinaite, que auxilia grandemente na construção dessa repugnância. Dentro de nossos padrões tradicionais e conservadores de maternidade, Halley nunca deveria ser mãe. Aliás, não deveria sequer existir.

Projeto Flórida

Para aceitarmos e reconhecermos a grandeza de Halley, e junto com isso compreender a genialidade de Sean Baker, precisamos observar as ações da personagem fora dos nossos padrões e preceitos tradicionais de maternidade, a maioria deles conservadores, machistas e ultrapassados. Essa ação é essencial para construirmos sobre Projeto Flórida uma apreciação minimamente próxima de suas imensas qualidades temáticas e artísticas.

Sem medo de desafiar preconceitos

Projeto Flórida desafia nosso conforto cognitivo. Desafia também nossa imposição egoísta de que as pessoas caibam em nossas normas mesquinhas de comportamento social para que legitimemos sua honra, caráter e dignidade. Ao fazer isso, o filme denuncia como somos rasteiros em nossos valores morais, que de morais não têm nada. São apenas estéticos, epidérmicos; apenas revelam nossa própria limitação ética. Sean Baker a todo o tempo exige que nos tornemos pessoas melhores para compreender a envergadura temática de seu filme e a coerência das ações de Halley. Mas o que ele se dispõe a enfrentar é desafiador, porque quase ninguém é capaz disso.

Bobby e Moonee

Para minimizar o peso do desafio, Baker instrui aqueles poucos que escolhem realizar o exercício de ruptura dos padrões burros, envelhecidos e impróprios a um mundo social imerso numa desestabilização crescente. Essa instrução vem na figura de Bobby, o maravilhoso personagem de Willem Dafoe. Bobby visivelmente flexibiliza suas expectativas de comportamento materno para receber e cultivar em seu coração o afeto por Halley e Moonee. Ele mesmo, também machucado pela vida e por sentimentos que fracassaram. Mas ainda assim mostra ser possível desfocar do próprio umbigo e ser capaz de enxergar com generosidade e responsabilidade a condição muito mais miserável das pessoas à sua volta.

Projeto Flórida revigora um tema clássico e eterno

Sean Baker preserva a grandeza da maternidade mesmo em condições em que ela se camufla por trás das condições de vida impostas pela desigualdade social. Com isso, nos apresenta uma das doenças morais que degradam nosso mundo: a de impor a milhões de pessoas, através da pobreza, do preconceito, da guerra e de outras injustiças, uma vida humilhante que as impede de criar seus filhos para além da sobrevivência. E, como se isso não bastasse, julgá-las e condená-las ao abandono porque, em desespero, elas não agem de acordo com normas que quase nunca podem cumprir.

Projeto Flórida

Entretanto, também nos apresenta a cura. Ela inclui nossa própria transformação pessoal, porque isso é a única coisa que nos permitirá enxergar as pessoas verdadeiramente, sem nenhum julgamento e nenhuma condenação. Essa transformação tão necessária nos dará algo importante em troca. Trata-se da capacidade cada vez maior de reconhecermos nas pessoas grandezas que muitas vezes não somos capazes de cultivar em nós mesmos. Nada é mais fundamental para que um dia nos tornemos pessoas menos pequenas.

Em resumo, imperdível em qualquer dia, ainda mais hoje. Projeto Flórida está disponível no Amazon Prime Video.

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7 comentários em “‘Projeto Flórida’ e a grandeza da maternidade

  1. Maravilhoso texto de um filme tão grande que não cabem adjetivos, por conta do trabalho de gênio do Sean Baker.

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