‘Quilos Mortais’ e a onipresença do biopoder
Última atualização: 10/09/2021
A rede de canais Discovery mantém em sua programação de reality shows a série Quilos Mortais – em inglês, “My 600lb Life”. Desde 2012, Quilos Mortais relata um ano da vida de pessoas que sofrem de obesidade mórbida num patamar muito acentuado. Elas iniciam o programa pesando pelo menos 270 quilos – as 600 libras do título original do programa.
Cada episódio mostra como uma dessas pessoas reage ao necessário processo de perda de peso. Isso inclui vários procedimentos e tratamentos além da cirurgia bariátrica, sempre realizada pelo médico Younan Nowzaradan, o Dr. Now. Como os episódios se encerram ao fim de um ano de tratamento, é frequente ficarmos sem saber se algumas delas alcançaram um peso que não represente ameaça de morte. Mas muitas melhoraram bastante sua condição de vida, e na internet é possível obter informações sobre algumas delas após o período do programa.
É importante salientar que a rede Discovery não parece pactuar com padrões e ditaduras sociais de imagem corporal, nem com práticas e discursos gordofóbicos. Prova disso é o programa Uma mulher de peso, exibido pelo TLC, um dos canais da rede. A série mostra o cotidiano de Whitney Thore, uma jovem dançarina e coreógrafa estadunidense que pesa 130 quilos. O programa trata com seriedade as dificuldades e situações de desrespeito veladas e explícitas por que Whitney passa em virtude de seu peso. Além disso, a imposição da magreza como modelo para o corpo feminino contemporâneo é constantemente posta em questão.
Quando comida significa morte
No caso de Quilos Mortais, as pessoas decidem se tornar pacientes do Dr. Now porque o peso excessivo praticamente inviabiliza sua vida. Muitas delas não conseguem mais trabalhar, manter relacionamentos sociais ou fazer projetos de vida. Muitas deixam de andar, permanecendo confinadas em casa. Precisam de cuidados constantes de familiares para fazerem sua higiene e se alimentarem.
As consequências da obesidade as transformam em pessoas com risco diário de morte, já que seus sistemas fisiológicos funcionam no limite da resistência. Portanto, precisam emagrecer imediatamente, se quiserem acordar no dia seguinte sem pensar que isso foi quase um milagre.
No entanto, Quilos Mortais nunca questiona o modelo contemporâneo de vida ultraconsumista e sedentária. Também não questiona o tipo de comida industrializada e de baixo custo que agora está presente em quase todo o mundo. Essa comida se compõe de carboidratos refinados e pobres em nutrientes, de carnes processadas e moldadas em gordura sólida, e de açúcar de cana e de milho. O glutamato monossódico comparece para fazer essa gororoba ter algum sabor enquanto diminui a sensibilidade das papilas gustativas.
Essas coisas todas, claro, contendo elementos altamente desmineralizantes, que as tornam substâncias (não merecem ser chamadas de alimentos) que engordam e desnutrem ao mesmo tempo. Ah, sim: é uma comida que se consome com litros de refrigerante, desse que muita gente usa para desentupir a pia da cozinha.
Quilos Mortais ignora o contexto social mais amplo
O que a Discovery não menciona é que a produção de uma comida industrializada que traz substâncias viciantes, cancerígenas e engordativas é um dos tentáculos do capitalismo. Sua problematização é feita, por exemplo, pelos estudos que discutem o conceito de biopoder. Trata-se, basicamente, do conjunto de mecanismos mais ou menos amplos de regulação e controle da vida biológica humana que ganhou alcance global na atualidade.
Esses mecanismos estão nas mãos de alguns dos grupos que assumem as rédeas da indústria e do comércio globais. São os grandes fabricantes de alimentos, os supermercados, os planos de saúde e as indústrias médica e farmacêutica. Todos eles lucram uma exorbitância na produção de doenças de fundo alimentar e, depois, em medicamentos, tratamentos e cirurgias para curá-las.
Nos Estados Unidos, a comida industrializada é muito mais barata do que os alimentos verdadeiros – legumes, verduras, frutas, carnes magras, cereais e grãos integrais. Os estadunidenses das classes sociais mais vulneráveis a consomem de forma quase exclusiva. Aqui no Brasil, um prato feito ainda é mais barato do que um lanche do Mac Donald’s ou outras marcas de junkie food. Por isso, não temos tido notícia de pessoas muitíssimo obesas como as retratadas por Quilos Mortais. Mas há previsões de que brevemente nos juntaremos a alguns países do hemisfério norte nas tristes estatísticas da obesidade infantil e adulta.
Uma visão de mundo que pode adoecer e matar
Quilos Mortais descreve um problema bem coerente com a sociedade estadunidense, habituada a definir causas puramente pessoais, e não também históricas e sociais, para os problemas que enfrenta. Lá, o pensamento é o de que as pessoas estão gordas demais tão-somente porque comem demais; viciam-se em comida como muitos se viciam em drogas ou jogo.
Em todos os episódios, as pessoas relatam o prazer que sentem quando estão comendo, algo que é logo substituído por culpa e infelicidade. Elas todas descrevem com as mesmas palavras o que a junkie food lhes traz: algum conforto, alguma satisfação passageira. Aliás, nos programas, nota-se facilmente que alguns de seus parentes também estão bastante obesos, o que evidencia o caráter de epidemia da doença nos Estados Unidos.
A abstinência de comida amedronta os pacientes do Dr. Now de tal forma que eles criaram ao longo da vida uma série de mecanismos para obtê-la de qualquer maneira. E, na contingência de não mais poderem buscá-la sem ajuda, manipulam outras pessoas para receberem seu gigantesco estoque diário. Em um determinado episódio, a câmera manteve em primeiro plano por mais de trinta segundos a paciente hipnotizada saboreando seu sanduíche. Ela está completamente alheia à sua família, que discutia acalorada acerca de uma situação complicada em que se encontravam.
Em outro episódio, a paciente chega a oferecer favores sexuais em troca de alguma guloseima. Num terceiro, o paciente confessa que na rua consome uma grande quantidade de junkie food, sem contar para a esposa o que faz.
Se a causa da obesidade está na vida individual das pessoas, logicamente a solução está na transformação individual dessas próprias pessoas – no máximo, de seus familiares, denominados facilitadores quando são eles que fornecem a comida que está matando seus entes amados.
A comida como punição
Essa solução nasce já no início do programa, que frequentemente mostra a infância dos pacientes marcada por abusos, violência e abandono. Assim, constrói-se a ideia de que as pessoas passaram a comer demais para substituir um afeto que não receberam, ou para compensar (às vezes se punir por) alguma violência sofrida. O próprio Dr. Now, que nem é psicólogo, afirma isso aos pacientes em quase todos os episódios, e não aceita quando algum deles não concorda com essa explicação.
O foco exclusivo na perspectiva individual para a causa da obesidade abstrai da questão o componente altamente viciante da junkie food, que eleva rapidamente a taxa de açúcar no sangue. Mas essa taxa também cai rapidamente, o que pode provocar crises de abstinência. Além disso, a comida que realmente alimenta está inacessível a milhões de pessoas. Isso isenta as multinacionais de alimentos de qualquer responsabilidade na epidemia de obesidade que já é real em muitos países.
Portanto, as prateleiras e gôndolas dos supermercados podem continuar a ficar abarrotadas de porcarias doces e salgadas. Dessa forma, as gigantescas indústrias de alimentos e fármacos poderão lucrar com o seu consumo e as decorrentes doenças que as pessoas provocaram em si mesmas – afirmação que também é repetida ad nauseam no programa. A tática dessas corporações é um pouco semelhante ao que a indústria do tabaco fez quando as primeiras pesquisas sobre câncer começaram a assustar os fumantes: sair de fininho e fingir que não tinha nada a ver com isso. Seja como for, elas fumavam porque queriam.
Em Quilos Mortais, um sucesso que é ganhar na loteria
É possível acreditar por uma vida toda que a responsabilidade de nossas doenças é apenas nossa, porque a presença do biopoder é tão acachapante em nossa vida que não conseguimos enxergá-lo nem identificá-lo. Acreditamos que ele não está em lugar nenhum – ou melhor, desconhecemos sua existência – porque ele está em todos os lugares. Assisti a alguns episódios da série e torci pelos corajosos pacientes que expuseram suas vidas para milhões de pessoas, desesperadas por uma saída para suas vidas tão fragilizadas. Comparando-se os muitos sucessos aos poucos fracassos apresentados, é possível pensar sobre o que pode levar uma pessoa com esse tipo de obesidade a superar sua condição e conseguir chegar a um peso que não mais represente risco de morte.
Se praticamente todos os pacientes afirmam ter começado a comer demais em função de traumas e sofrimentos durante a infância, a comida parece mantê-los nessa fase da vida, em que a prática de comer está quase exclusivamente ligada à obtenção de prazer pelo paladar. Isso é diferente da adolescência e da fase adulta, quando outros prazeres ocupam nossa agenda, e a ideia de comer, embora ainda prazerosa, começa a se relacionar também com a necessidade de nutrição. Mas, para as pessoas do programa, a comida acaba por ser sua única conexão com a vida, porque as consola dos traumas passados que elas não têm condições emocionais de vencer.
Assim, se elas são responsabilizadas completamente pelo mal que sofrem, sua superação também deve ser creditada apenas a elas. Afinal, elas emagreceram enfrentando uma dependência que durou décadas. Essa superação não raro se dá com o aprendizado de novas conexões com a vida, acompanhadas do entendimento profundo dos traumas de infância e da decisão de viver uma vida plenamente adulta.
Quem se cura é herói
Todas essas ações estão presentes na minha paciente preferida. Trata-se de Susan, que inicia o programa expressando imensa tristeza por uma vida sem perspectivas. Mas o termina tomando decisões importantes que a encaminham para a total autonomia como pessoa. Por sofrer a crueldade extra de não ser informada sobre a forma como as substâncias nocivas da comida a viciaram ao longo dos anos, Susan pôde contar apenas com sua coragem e força de vontade para conseguir perder peso e construir uma nova vida.
Quilos Mortais deve ser visto como uma série de narrativas sobre crescimento pessoal e individual. Mas igualmente deve ser encarado como uma das formas de lidar com uma das graves doenças produzidas pela estrutura mastodôntica que o biopoder assume na atualidade. Esse poder cria uma condição destruidora em pessoas já machucadas pela vida e propensas a dependências. Contudo, não arca com qualquer responsabilidade por isso, e depois as deixa sozinhas para lidarem com os efeitos. Os pacientes do programa provam que o ser humano ainda é maior do que a indústria que o envenena todos os dias, e por isso merecem todo o nosso respeito e admiração.
Seu texto é muito importante é interessante. Ainda mais quando as autoridades de saúde pública falam, com preocupação, sobre uma “epidemia de obesidade” entre crianças e adolescentes. Contudo, não podemos tirar a responsabilidade individual dos pacientes que apareceram em “Quilos Mortais”. A decisão de levar uma vida sedentária e comer comida ruim foi DELES e somente DELES. Afinal de contas, os restaurantes oferecem grande quantidade de alimentos a base de carne e, mesmo assim, existem os veganos. Mesma coisa para o consumo de álcool e tabaco – embora o acesso a tais produtos seja muito fácil, nem todo mundo é fumante ou alcoólatra.
Obrigada, Pérsio. Muito pertinente sua abordagem.
Sim, não descarto o papel da vontade das pessoas em comer coisas que lhes fazem mal e podem torná-las mortalmente obesas.
Contudo, essa perspectiva já é dada todo o tempo pelo programa, em que se oblitera a questão de saúde pública provocada pela indústria de alimentos. Meu texto teve a intenção de apresentar o contraponto necessário a uma visão mais ampla do problema e do sofrimento das pessoas, que, a meu ver, acaba sendo aumentado com a proposta de colocá-las como as únicas responsáveis pelo seu infortúnio, o que não é verdade.
Além disso, o lugar em que me situo em meus textos aqui no Longa História, aliás em todo material escrito que produzo, inclusive o acadêmico, sempre está de acordo com minha visão cognitivista. Como cognitivista, assumo a premissa de que há uma distância gigantesca entre o que é mostrado às pessoas e o que elas estão enxergando. As pessoas enxergam aquilo que podem, relativamente ao volume de conhecimento que já acumularam ao longo da vida. Isso implica que, se se conhece pouco, se enxerga pouco, se aprende pouco.
Não sei em que medida as pessoas atingidas pelo programa desenvolveram uma compreensão sobre a comida como alimento – o que faz bem, o que faz mal, e em que quantidade. Não há como definir se elas já tiveram acesso a informações sobre alimentação saudável. O que se pode perceber facilmente é que elas são pessoas que pertencem a uma classe social não raro desfavorecida, sem muito acesso a alimentos saudáveis, porque isso nos Estados Unidos é muito caro mesmo. Sobre isso, muitas delas relatam no programa não terem conseguido fazer a dieta porque a comida era muito cara para a renda delas.
Ainda por força de minha cosmovisão cognitivista, sempre assumo as pessoas como estando na interseção do individual e o coletivo. Por isso me incomoda o recorte apenas individual do programa, embora eu saiba que isso é da cultura estadunidense. É importante em algum momento salientar a que tipo de alimentação a pessoas pobres nos Estados Unidos estão sujeitas, e qual é a engrenagem perversa a que estão submetidas. O programa não incluir essa variável em sua equação é algo que me chateia muito, por isso escrevi o texto.
Os fast food são mais baratos, mas eles claramente têm dinheiro para comprarem comidas saudáveis. O que gastam em fast food daria para comerem muito bem. Essa gente gasta muito dinheiro para engordarem, não é barato. Lógico que nem tudo é culpa deles, afinal, a indústria de alimentos processados sabem muito bem como viciá-los. O governo devia cair em cima dessas empresas, mas estas já devem ter seus representantes nos congressos (a tal da democracia garante que essas empresas mandem na gente. Um exemplo são as construtoras, que têm políticos em praticamente toda cidade, e “nós” achamos que os escolhemos, pois somos manipulados por campanhas). A gordura, não mórbida, já está até sendo vista como algo bom, algo empoderado, imagino quem lucra com esse empoderamento. Já que engordar é bem mais fácil que emagrecer, e se você falar algo contra, vai ser taxado de retrógrado. Enquanto isso, crianças de 10 anos têm 90 quilos e muito se fala, mas não se faz nada.
Me incomoda essa visão meritocrática estadunidense. Aumenta o sofrimento das pessoas que estão à margem. Vim parar no seu post após assistir um episódio onde o Dr Now fala pra uma paciente que se ela ficar quatro anos sem comer não haverá problema, pela quantidade de gordura que ela possui no corpo. Sério isso? Ele fica batendo na tecla que não tem problema ela pular refeições e ela teimando que precisa se nutrir, que o problema é a quantidade de comida que ela come numa paulada só e tal. Achei curioso que no episódio dela, logo ela que discordou do médico e não deixou que ele constrangesse ela, não fizeram muitos cortes como nos outros episódios que assisti, fazendo com que ela parecesse cansativa e faladora.