Round 6
Última atualização: 11/10/2021
Muitos de minha geração que assistiram à série da Netflix Round 6, da Coreia do Sul, devem ter, assim como eu, se lembrado do filme de Mel Stuart A fantástica fábrica de chocolate (1971). Os mais jovens provavelmente se recordarão do mesmo enredo, mas na versão mais recente, de Tim Burton (2005). Inegavelmente, ambas as obras nos despertam os instintos gastronômicos mais primitivos. Porém, não é disso que se trata quando comparamos os filmes de Stuart e Burton à série da Netflix. Explico essa comparação daqui a pouco, porque antes preciso abordar outros fatos.
As notícias sobre Round 6 já me chegavam bem antes de eu conhecer o desfecho da série, o que, confesso, não demorou. Como muitos, rapidamente devorei seus nove eletrizantes episódios. No momento em que escrevo este texto, a audiência gigantesca da série já deve ter ultrapassado Bridgerton, a aventura inglesa picante de Shonda Rhymes que é o maior sucesso da Netflix mundial. Também neste momento, Round 6 lidera no top 10 do streaming.
Outra notícia: apesar do imenso sucesso da produção, alguns blogs sobre a Coreia do Sul, como este, revelam que muitos coreanos torceram o nariz para o enredo e os temas abordados. As razões alegadas para que o estrondoso sucesso do resto do mundo não se repita no próprio país onde a série foi produzida talvez derive da imensa quantidade de obras coreanas na TV e no cinema. Isso ajuda a apurar o gosto dos espectadores do país, como argumentarei abaixo.
Round 6 é a Fantástica fábrica de chocolate para adultos
A lista dos problemas da série inclui sobretudo o modelo narrativo estereotipado que a fundamenta. Os personagens são monocromáticos e sem individualidade. As figuras femininas também são formatadas e sem agenciamento. E o protagonista, do tipo anti-herói, não ganha credibilidade dentro de uma estrutura ficcional conservadora.
Ora, já há uma série de dramas e filmes coreanos que quebram esses padrões, alguns de imenso sucesso entre os espectadores. Isso faz subir seu nível de exigência em relação à ficção produzida no país. O resultado é que alguns dos K-dramas líderes de audiência no país são estruturados de forma ousada o suficiente para ensinar ao resto do mundo como fazer TV popular e de vanguarda.
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À exceção do anti-herói, os componentes de Round 6 estão todos presentes nas duas versões da Fantástica fábrica de chocolate. As crianças más são punidas, acontecendo o mesmo a seus pais, reconhecidos como os causadores dos vícios de seus filhos. Charlie, o menino pobre mas honesto e ético, tem suas qualidades reconhecidas e premiadas com as benesses prometidas pelo magnata do chocolate.
Round 6 pode ser resumido basicamente como sendo a Fantástica fábrica de chocolate para adultos. É um jogo de resta-um em que as pecinhas são pessoas, as quais vão sendo eliminadas (eliminação, aqui, assumindo o sentido que você preferir) à medida que fracassam em alguma etapa. Inclusive os Ooompa-Loompas se repetem, agora em “nova” versão, e até o jogo de cada etapa da competição é infantil. Esse último dado, além de uma ironia, se encaixa perfeitamente no arcabouço narrativo pensado pelo roteirista e diretor Hwang Dong-Hyuk.
Uma mesma estrutura ficcional tanto atrai fãs quanto gera críticas
O interessante aqui é perceber que, a um só tempo, o mesmo conservadorismo acomodado de Round 6 afasta alguns espectadores mas aproxima muitos outros. Em tempos difíceis como o que vivemos no presente, sempre há lugar para uma ficção de entretenimento, que se encaixe em padrões narrativos confortáveis e sem muita ousadia temática, como é o caso da série.
Um dos motivos alegados para que Round 6 se apresente dessa maneira é que Hwang Dong-Hyuk escreveu a série há mais de uma década. Antes, portanto, que a revolução narrativa inspirada nas ciências sociais atingisse a dramaturgia da maneira massiva como acontece agora.
Mas isso não é justificativa suficiente. Filmes coreanos excelentes e extremamente questionadores, como Memórias de um assassino (2003), do consagrado Bong Joon-Ho, e o belíssimo Poesia (2010), de Lee Chang-Dong, estão sendo produzidos há décadas.
Além disso, mesmo uma estrutura engessada pode permitir brechas para detalhes complexos, como é o caso do ótimo K-drama O palhaço coroado, também da Netflix.
Round 6 diz o que já foi dito muitas vezes
Round 6 é muito sobre nossa expectativa de como o mundo deve ser: os maus sendo punidos, e os bons (ou pelo menos os maus que se redimem) sendo premiados. Mas, se olharmos um pouco mais, capturando em nosso olhar quem na série define as regras do jogo e premia seus vencedores, a tentativa de Round 6 de satisfazer nosso desejo acaba criando outro desejo, que é o de sabermos de fato onde está o mal.
É neste ponto que round 6 se diferencia da Fantástica fábrica de chocolate. Nas duas versões do filme, a maldade e a bondade estão centradas nas pessoas. Não há uma problematização sobre o sistema econômico e histórico que produz a miséria em que vive a família de Charlie. Há uma escolha evidente na perspectiva individual dos valores éticos e morais.
Em Round 6, insinuam-se a todo momento os perversos e onipresentes senhores do jogo, que imaginaram e concretizaram um BBB para uns poucos privilegiados, e cujas regras jamais seriam aceitas pela Endemol. Sua perversidade é facultada pela própria perversidade do capitalismo como modelo de mundo, que também torna perversos os desprivilegiados, que se matam por uma chance de sair da miséria.
Em suma: em Round 6 todo mundo é perverso, mas em alguns casos a perversidade é justificada pela miséria. Pois é: já vimos essa história muitas e muitas vezes. Por isso, quando assistimos ao primeiro episódio da série, já sabemos qual será seu final. Além disso, quando uma obra se propõe a dizer muitas coisas, acaba por não dizer nada de relevante, porque perde foco e aprofundamento.
Tenho muita inveja dos coreanos
Sobre isso, não estou dizendo que gostar de Round 6 é ter mau gosto. Eu mesma me envolvi a ponto de maratonar rapidamente o enredo e reconhecer suas inegáveis qualidades. Lee Jung-Jae é um dos atores mais queridos do país. Me agrada imensamente que uma produção de grande sucesso seja protagonizada por um artista fora dos padrões etários do K-pop.
Sou fã da ficção coreana e morro de inveja de um país que produz, exporta e premia produções iconoclastas, enquanto estamos aqui no Brasil lutando para continuarmos a fazer alguma coisa, qualquer coisa. Lutando para continuarmos a dizer isso que eu acabei de dizer.
Mas penso ser interessante que as pessoas percebam que fomos educados para reconhecer como bons determinados padrões ficcionais que combinam com nosso desejo maniqueísta, quase infantil, de um mundo plano, sem nebulosidades, contradições ou paradoxos. O sucesso da série mostra que, mesmo que amadureçamos, esse desejo não morre, porque de fato um mundo transparente, sem armadilhas cognitivas, seria muito, muito bom.
Mas precisamos, como adultos, equacionar nosso desejo com realidades que às vezes nos recusamos a reconhecer. Obras que realizam essa equação são incômodas. Contudo, nos franqueiam experiências impactantes no espaço da ficção. A vantagem disso é que lá o sangue derramado é apenas maquiagem.
Direção: Hwang Dong-Hyuk
Roteiro: Hwang Dong-Hyuk
Trilha Sonora: Jaeil Jung
Elenco: Lee Jung-Jae, Park Hae-Soo, Rama Vallury, Jung Ho-yeon, Wi Ja-Hoon, Heo Sung-Tae, Oh Yeong-Su, Kim Joo-Ryung, Gong Yoo,