The Bear – segunda temporada
Este texto contém spoilers da segunda temporada da série The Bear, disponível na plataforma Star+. Peço desculpas ao leitor, mas não seria possível desenvolver minhas ideias sem mencionar trechos e episódios importantes da obra.
Os roteiristas de The Bear não ganham o suficiente
Assim como muita gente, incluí a primeira temporada de The Bear entre as três melhores séries de 2022, junto com Severance (Apple TV) e Andor (Disney). Publiquei no Longa História minhas razões para reconhecer imensas qualidades na forma como se contou a complicada história do chef Carmy (Jeremy Allen White), e no tratamento dos temas escolhidos pelos roteiristas da série.
Também como muita gente, esperei ansiosa pela segunda temporada. Mantive, porém, aquela (justificada) desconfiança de que o nível de refinamento da primeira temporada poderia não se repetir na segunda. Mas, para a felicidade de todos os fãs, o criador Christopher Storer e sua equipe ainda maior de roteiristas dobraram a aposta e elevaram o padrão de produção. Ele já era alto na primeira temporada, mas alcança um novo patamar na segunda.
A razão principal para esse salto de qualidade e sofisticação diz respeito a algo que eu já havia identificado na primeira temporada da série. Seus roteiristas seguem construindo eixos temáticos finamente entrelaçados e voltados para uma notável integração narrativa.
Contudo, em 2023 o número de eixos temáticos de The Bear diminui para praticamente dois. Isso permite um aprofundamento de ideias robusto, poderoso e enxuto a ponto de prescindir de mais tempo além dos seus dez episódios, a maioria com mais ou menos 35 minutos. O resultado é uma narrativa que, ao longo do tempo, cresce fértil em nossa mente, como os melhores pães de fermentação natural. Não admirarei se os roteiristas aproveitarem o sucesso e se manifestarem por aumento de salário. Eles merecem.
The Bear agora traz dois temas: a potência e o protagonismo
Não são apenas os roteiristas os merecedores de louvor pela obra de arte que vemos na tela. Em 2023, The Bear retoma com capricho elementos da primeira temporada, mas reivindica uma assinatura própria. Ela está visível primeiramente nos planos fechados sobre os personagens, em lugar da dinâmica antes claustrofóbica, agora hiperativa, da lanchonete/restaurante dos Berzatto. É porque agora o desenrolar dos episódios se alicerça mais nas pessoas, em suas personalidades e em sua capacidade de reagir ao fato desencadeador da temporada atual.
Esse fato é a decisão de transformar a lanchonete antes dirigida por Mikey (Jon Bernthal), irmão falecido de Carmy, em um restaurante nível estrela Michelin, compatível com o talento de Carmy. Assim como ocorreu, na temporada passada, com a chegada do chef, essa decisão provocará fortes movimentos emocionais nos personagens. Em 2022, esses movimentos já estavam entre os temas da série. Agora, eles constituem o cerne da narrativa, inclusive, e sobretudo, para Carmy.
O advento do novo restaurante impõe aos personagens a necessidade de transformação pessoal e profissional. Para quase todos eles, isso diz respeito a uma descoberta de potência, que os obriga a aguentar a demanda emocional do processo de se tornarem outras pessoas. Paulatinamente, cada um vai compreendendo o que significa fazer parte do projeto de construir um dos melhores restaurantes do mundo – ou seja, fazer parte de algo realmente grande.
Entretanto, para Carmy, forçosamente a pessoa que deve assumir a frente nessa transformação, a necessidade imperiosa é a de protagonismo, de liderança. Ao longo dos episódios, salta aos olhos como os outros personagens vão abraçando com todos os membros a ideia e a realidade do restaurante. Em contraste, Carmy se move progressivamente a esmo nesse processo, por não conseguir superar os recalques infantis que a primeira temporada da série já havia evidenciado.
The Bear é uma narrativa em busca de protagonista
E aí, sobre isso, assim como na temporada anterior, novamente a série paralisa seu andamento para argumentar sobre o que motiva a não-resposta de Carmy quando chamado ao protagonismo e à liderança. Isso é feito com uma estratégia que aprecio muito: a escolha por contar uma história para construir um argumento. Mantém-se o paralelo de justificar as atitudes de Carmy com recortes de eventos familiares que envolvem comida. Mas, desta vez, abre-se um episódio inteiro, aliás mais longo que os demais, para evidenciar alguns pontos importantes sobre Carmy e sua família.
O ponto principal é a total disfuncionalidade da família Berzatto, e, em meio a isso, há a desconstrução da imagem poderosa de Mikey, que a primeira temporada apresentou. Jon Bernthal retorna com brilhantismo para mostrar que, pessoal e profissionalmente incompetente, Mikey jamais poderia ter sido um exemplo de pessoa adulta para Carmy.
Aliás, quando se trata de incompetência administrativa, o episódio da ceia de Natal evidencia um dos motivos para a impossibilidade de Carmy tornar-se protagonista de sua própria narrativa e um líder entre os que o respeitam e admiram. Trata-se da falta de um mínimo exemplo de protagonismo em sua própria família. Não apenas Mikey se revela incapaz para liderar os Berzatto (“você não é nada”, seu tio Lee (Bob Odenkirk) lhe joga na cara). A matriarca Donna Berzatto (Jamie Lee Curtis) é tão emocionalmente desequilibrada, que se torna impossível sua presença junto com qualquer outra pessoa num mesmo ambiente. Mais ainda: a própria integridade física desse ambiente fica ameaçada com sua presença.
Um gigante em meio à gente comum
Entretanto, mesmo com esses esclarecimentos, mantém-se a ambiguidade, algo que já apontei sobre a série, sobre o que leva Mikey a manter Carmy longe do estabelecimento da família. Um novo fator se agrega aí: além da inveja do irmão mais novo ou a ação de projetá-lo para lugares mais importantes, pode ser também o medo de que ele visse sua fragilidade e incapacidade para administrar qualquer coisa, inclusive a própria vida.
Mas, como se não bastassem todas essas possibilidades, ainda haveria uma outra razão para o fato de Mikey manter Carmy afastado. Ninguém na família parece ter uma ideia precisa da envergadura profissional de Carmy. Aliás, alguns chegam a subestimá-lo, tentando arrumar-lhe uma namorada. Uma de suas primas (Sarah Paulson) o convida para trabalhar em um dos seus restaurantes em Nova York, parecendo não fazer ideia do que é o Noma, em Copenhagen, onde Carmy era chef.
A natural timidez de Carmy é outro fator a mantê-lo no lugar periférico que ocupa da família. Os lugares centrais são ocupados por seu irmão e sua mãe, e parece ter sido sempre assim. Como eles nada fazem para merecer esses lugares, Carmy permanece sem práticas familiares que o ajudem a ser o líder que seus comandados esperam dele.
Isso torna equivocada sua leitura para o que causa seu fracasso como chef do restaurante The Bear. O fato de conhecer uma moça e começar a namorar de forma alguma seria um impedimento para seu sucesso profissional. Pertencente a uma família de gente que se sabota, as chances de Carmy de se sabotar também já estavam previamente incluídas no cardápio.
A coragem de se tornar outra pessoa
Como contraste para o que Carmy não conseguiu ser, Sidney (Ayo Edebiri), a outra chef do restaurante The Bear, abraça a missão de tornar-se outra pessoa, tornar-se maior, para caber no tamanho do ambicioso projeto do restaurante. Mas o contraste Carmy x Sidney (ao não compreender por que Carmy desenha seus pratos, Sidney demonstra ainda não capturar em plenitude a dimensão estética da gastronomia) é apenas um dos cotejos entre personagens na série. Ao abrir espaço para as trajetórias de desconstrução/reconstrução dos personagens, o roteiro de The Bear estabelece mais um paralelo. É o que se dá entre os funcionários do novo restaurante e personagens que impulsionam seus movimentos.
Em todos os casos, são contadas histórias que não são de vitórias, mas sim de falência, pobreza, dificuldade, luta, e admiração por quem é maior. Algo típico, sempre, de quem é muito grande, porque gente pequena não tem coragem de reconhecer os próprios fracassos nem de admirar quem é realmente grande.
Sidney tem sua contraparte em Carmy, assim como Marcus (Lionel Boyce) a tem no chef de pâtisserie Luca (Will Poulter, surpreendente), e Ebraheim (Edwin Lee Gibson) a tem em Tina (Liza Colón-Zayas). Por sua vez, o complicadíssimo Richie (Ebon Moss-Bachrach) precisa de dois mentores para se colocar nos trilhos: o chef de staff Garett (Andrew Lopez) e a chef Terry (Olivia Colman), outra detentora de estrela Michelin.
Magníficas rimas
Em particular, note o leitor a bela rima entre os encontros de Marcus e Luca, de um lado, e Richie e Terry, de outro. Há contrastes entre esses encontros porque o primeiro guarda uma simetria de estatutos, e o segundo não. Mas a câmera filma a ambos frontalmente, igualando os personagens como pessoas que estão no movimento da vida e se permitindo transformações pessoais. Luca conta sua história para Marcus enquanto pesa massa de pão e vai entregando pequenas porções ao colega. De certa maneira, ao entregar a Marcus as porções, Luca lhe “passa o bastão”, cedendo a ele o lugar de pessoa que terá a vida turbinada pela presença de Carmy, assim como a sua foi.
A conversa entre Richie e Terry não envolve passagem de bastão porque é abissal a distância profissional entre os dois. Mas, no caso deles, a presença de cogumelos sendo descascados não apenas coloca Richie na posição de aprendiz. Ao se propor realizar tarefa tão simples, a chef Terry personifica para Richie que pessoas legitimamente notáveis realizam com o mesmo capricho todo tipo de tarefa, e só chegaram a uma posição privilegiada porque trabalharam duro e são corajosas para aprender com os próprios erros.
Em conjunto, esses diálogos, na progressão narrativa da série, informam aos espectadores sobre a importância profissional e ética de Carmy. Pelas ações do personagem, não conseguimos entrever as razões de seu sucesso. É pela boca de chefs renomados que ficamos sabendo sobre seu caráter inspirador e confiável, a par de seu talento diferenciado.
Em resumo
Vou terminar este texto como geralmente faço em meus trabalhos acadêmicos. Resumirei as relações e contrastes entre a primeira e a segunda temporada de The Bear. Trata-se de uma iniciativa de evidenciar que há uma narrativa integrada se desenrolando, grávida de novos acontecimentos.
Em termos de enredo, fica a questão de se Carmy irá ou não seguir a sina da família e fracassar miseravelmente no novo restaurante. Em termos de narrativa e argumento, o fracasso ou o sucesso dependerão diretamente de Carmy tornar-se ou não verdadeiramente adulto. Para isso, precisa abandonar seus desejos infantis e abraçar as responsabilidades que suas qualidades profissionais implicam.
Pelos paralelos entre as temporadas que testemunhamos, já podemos esperar, para o terceiro ano, novos dados acerca da família de Carmy, os quais nos ajudarão a delinear um pouco mais a complexidade do personagem, bem como as motivações para suas ações, ou a falta delas. Junto a isso, seguiremos torcendo pelos corajosos personagens que abraçaram junto com Carmy e Sidney o desejo de ostentar uma estrela Michelin.
E, claro, como acabamos de reconhecer na segunda temporada de The Bear, não é demais imaginar que todos os envolvidos na série estão realmente dispostos a entregar bem mais do que esperamos. Todos, sem exceção, parecem motivados para conquistar uma terceira estrela Michelin. Os comensais, ou melhor, os espectadores, agradecem deliciados.
Direção: Christopher Storer, Joana Calo, Ramy Youssef
Roteiro: Christopher Storer, Catherine Schetina, Karen Joseph Adcock, Sofya Levitsky-Weitz, Alex O´Keefe
Edição: Joanna Naugle, Adam Epstein
Fotografia: Andrew Wehde
Design de Produção: Merje Veski
Trilha Sonora: J. A. Q., Johnny Iguana
Elenco: Jeremy Allen White, Ayo Edebiri, Ebon Moss-Bachrach, Lionel Boyce, Abby Elliott, Liza Colón-Zayas, Jon Bernthal