Top gun – Ases indomáveis
Última atualização: 30/06/2022
A estreia de Top Gun: Maverick, em 26 de maio de 2022, recebeu grande atenção de crítica e público no mundo inteiro. O filme chegou a ser exibido – e aclamado – no Festival de Cannes do mesmo ano. É notável o hiato de mais de três décadas entre o que Tom Cruise & Cia. oferecem agora aos espectadores e o original Top Gun: Ases Indomáveis (1986), primeiro filme do personagem Maverick, que lançou Cruise como astro de filmes de ação. Normalmente, continuações de filmes não são lançadas depois de tanto tempo.
Sem dúvida, Top Gun: Maverick está sendo visto e analisado com os olhos do século 21. Assim, inevitavelmente, percepções contemporâneas sobre masculinidade, machismo e misoginia saltam de todos os textos sobre o filme. Nesse pormenor, as coisas melhoraram. Hoje em dia, por exemplo, já abrimos mão do entendimento de que ser um militar indisciplinado é algo meritório – ainda mais quando vemos o que militares indisciplinados fazem quando ocupam altos cargos administrativos.
Por isso, é bem interessante também rever Top Gun: Ases Indomáveis, quando o jovem Maverick não fazia ideia dos efeitos que suas decisões acarretariam, com o olhar contemporâneo que o filme hoje pode receber. Hoje estão disponíveis à nossa avaliação muitos conceitos capazes de desconstruir uma obra que marcou época e arrastou milhões ao cinema. Se ele tivesse sido lançado hoje, teria tido o mesmo sucesso?
O outro lado é este lado mesmo
O primeiro impacto que experimento ao assistir a Top Gun: Ases Indomáveis em 2022 é o da testosterona que salta da tela a cada frame. Na década de oitenta, a ideia parecia ser a de que isso produziria uma ótima impressão em toda a audiência. Mas atualmente o número de pessoas que reage positivamente a isso é seguramente bem menor.
Ao longo dos anos, mais e mais pessoas passaram a acreditar que o excesso de exibição de virilidade traduzia um desejo reprimido de passar para o outro lado, ou seja, o lado da homossexualidade. Agora, muita gente já se convenceu – eu incluída – que esse outro lado na verdade é o mesmo lado.
Essa constatação é que nos permite dizer que filmes como Top Gun: Ases Indomáveis são um tipo de distorção de filmes LGBTQIA+. Ao mesmo tempo em que são obras sobre homoafetividade, são também obras homofóbicas.
De fato, a ambiguidade carimba todas as ocasiões em que o confronto de machos disputando o título de melhor entre os melhores pilotos da Marinha estadunidense alcança o contato físico. São frequentes as imagens de homens se encarando de perto, e é inevitável a sugestão ali de que falta pouco para se beijarem. Odeiam-se, mas os olhares são de admiração muito mal disfarçada.
Top Gun: Ases Indomáveis está completamente dentro da caixinha dos filmes de ação em que adversários ao fim acabarão de respeitando: competem entre si só para se louvarem no fim. Por isso, as cenas são de ação apaixonada, tanto para o ódio, quanto para o que quer que esses homens sintam uns pelos outros.
Top Gun: Ases Indomáveis é um filme sobre broderagem
Na década de oitenta, não havia linguagem para reconhecer e tratar dessas paixões homoafetivas. Portanto, era muito mais fácil, seguro e naturalizado manifestá-las. Contudo, hoje, por conta dos ganhos conceituais que agora ocupam as ruas e as conversas na vida fora dos meios acadêmicos, é muito incômodo ver um filme desses sabendo o que a gente sabe hoje.
Por isso, é crescente a reação à cada vez mais escancarada evidência de que os que se julgam muito machos desejam apenas a companhia de outros machos. Consequentemente, certos arautos contemporâneos da macheza minimizam a proximidade com outros homens, dizendo que ali não há traços de homossexualidade. É o que chamamos hoje broderagem.
Top Gun: Ases Indomáveis mordisca um naco da herança John Wayne, que popularizou um modo de ser macho no cinema. Do western, o tema teria se espalhado, com as variações necessárias, para filmes sobre outros espaços masculinos por excelência: o serviço militar, as pistas de corrida, os ringues de boxe, os rodeios, as corporações financeiras, e muitas mais.
Vários tipos de macheza no menu de Top Gun: Ases Indomáveis
Em Top Gun: Ases Indomáveis, há machezas para vários gostos. Há o tipo Maverick, o macho insubordinado que se diverte realizando proezas fora do regulamento, e acaba aclamado porque, com suas estripulias, salva a vida dos companheiros.
Há também o macho frio (Val Kilmer, como Iceman), que, mesmo sob alta pressão, mantém a razão e o planejamento – ambos qualidades masculinas que ao longo do séculos serviram ao discurso diferenciador de nobilizou os homens e subalternizou as mulheres.
E há o macho-escada (Anthony Edwards, como Goose), que está ali apenas para salientar mais ainda as qualidades viris do protagonista. Este macho é o do tipo bem comportado, geralmente casado. É posto no filme para provar que é com mulheres que eles transam. Entretanto, ainda desejam e preferem a companhia competitiva e a admiração pelos do mesmo sexo, como assevera a personagem de Meg Ryan.
No que diz respeito à imagem feminina, Top Gun: Ases Indomáveis obedece à receita dos filmes de ação, com a vantagem de que na década de 80 do século passado nem era necessário disfarçar a misoginia. Em filmes assim, as mulheres são incluídas com uma tarefa análoga à dos machos-escada: estão ali para reforçar que os machos não são gays.
E a misoginia como sobremesa
Se transar com mulheres é algo fundamental ao macho, colocá-las em condição de inferioridade é tão importante quanto. Esse lugar nada invejável está reservado à namorada de Maverick, Charlie (Kelly McGillis). Maverick a desqualifica em público em mais de uma ocasião.
A tomar pelo filme, parecia haver algum consenso de que desqualificar mulheres é uma estratégia de sedução, porque a personagem, mesmo assim, se apaixonou pelo protagonista. Mas naquela década ainda era possível fazer um filme em que isso poderia dar certo. E, como, todos puderam ver, deu.
Numa segunda cena, a professora Charlie reprova a manobra de Maverick, e, ato contínuo, o colega de trás o elogia. Sem dúvida, essa cena se inspirou na certeza masculina de que os homens se exibem para si mesmos na ilusão de que as mulheres também gostam disso, gostam dessa exibição. Acho desnecessário especular qual das duas opiniões Maverick considerou legítima.
Aliás, falando em opinião, não posso deixar de associar filmes como Top Gun: Ases Indomáveis à pesquisa, divulgada recentemente, que revelou que, no Brasil, 58 por cento dos homens é a favor que o aborto permaneça criminalizado, 44 por cento deles são contra o feminismo, e 44 por cento também (devem ser os mesmos) consideram importante as mulheres se casarem virgens.
É… pelo visto, a broderagem ainda terá longa vida pelas plagas de cá.
Direção: Tony Scott
Roteiro: Jim Cash, Jack Apps Jr., Ehud Yonay
Edição: Chris Lebenzon
Fotografia: Jeffrey Kimball
Design de Produção: John DeCuir Jr.
Trilha Sonora: Harold Faltermeyer
Elenco: Tom Cruise, Kelly Mc Gllis, Anthony Edwards, Val Kilmer, Tom Skerritt
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