True detective – quarta temporada
Por Susana de Castro*
Última atualização: 26/05/2024
Esta crítica de True Detective contém spoilers
A quarta temporada da série True Detective, desta vez estrelada por Jodie Foster e Kali Reis, com roteiro e direção da mexicana Issa Lopez, entrou no ar em 14 de janeiro deste ano. Sem dúvida, fui uma dos 12, 7 milhões de espectadores que ficaram esperando avidamente o lançamento semanal de cada novo episódio. Foram seis no total. Cada um mais eletrizante do que o outro. Com efeito, True Detective me impactou tanto pelo seu aspecto visual, quanto pelo aspecto narrativo e dramático.
Embora me considere uma pessoa solar – jamais conseguiria morar em lugar gelado, pois adoro mar e natureza verdejante -, amo as séries nórdicas justamente por causa das paisagens geladas. Além disso, considero que este visual belíssimo produz um efeito estético maravilhoso em séries de suspense.
A temporada se desenrola a partir do último pôr do sol do ano na fictícia Ennis, no Alasca. Logo após, o local ficará no escuro total pelos próximos dois meses. Chamado de noite polar, o fenômeno acontece geralmente entre novembro e janeiro no norte do Alasca, quando o sol não sobe acima do horizonte. Apesar de fictícia, Ennis foi inspirada em uma região verdadeira do Alasca, a North Slope Borough.
A região tem uma população bastante esparsa, com pouco mais de 10 mil habitantes, e na qual a cidade de Utqiaġvik serve como um núcleo local. A propósito, Utqiaġvik é a cidade mais setentrional dos Estados Unidos e serve até os dias de hoje como lar para o grupo indígena Iñupiat, retratado na temporada.
Crimes na terra gelada
Por causa das temperaturas congelantes, True Detective não foi, entretanto, filmada no Alasca, mas sim na Islândia. “A área no Alasca aonde precisávamos ir era quase inacessível, eles mal têm estradas e seria muito difícil. O clima é muito mais frio do que na Islândia, então filmamos tudo lá, o que não poderia ser mais incrível”, revelou Jodie Foster em entrevista ao programa Jimmy Kimmel Live.
Ao longo da temporada, a xerife Liz Denvers (Jodie Foster) e a patrulheira Evangeline Navarro (Kali Reis) investigam as mortes de cientistas, encontrados nus e congelados fora da estação científica Tsalal em que moravam e trabalhavam em um projeto financiado pela mineradora Silver Sky. À indígena Evangeline interessa em primeiro lugar resolver o assassinato ocorrido anteriormente, o da ativista Annie K., morta brutalmente, como mostra o vídeo que foi recuperado de seu celular pelas detetives.
A mineradora Silver Sky é responsável pela maioria dos empregos locais. Annie K., faxineira da estação científica ao lado de outras mulheres indígenas, era também a parteira da comunidade Iñupiat. Annie K. acusava a mineradora de estar poluindo a água da cidade e causando a morte dos bebês das mulheres Iñupiat.
Em True Detective as mulheres são protagonistas
Aqui começa a se apresentar o elemento que para mim é fundamental em toda a trama, a saber, o papel das mulheres como reprodutoras da vida. Isso as torna as principais ativistas na luta por seu território e contra o extrativismo dos recursos naturais.
Assim, além de serem as únicas responsáveis pela reprodução da vida, condição de sobrevivência de seu povo, as mulheres indígenas guardam os saberes ancestrais que marcam a cultura Iñupiat, como a série mostra, por exemplo, através das pinturas corporais feitas em rituais entre as mulheres.
Nesse sentido, Annie K. teria sido morta por seu ativismo político, ou foi mais um crime sexual sem solução? Apesar de achar que deve haver uma explicação racional para os crimes, a xerife Liz não é alheia aos apelos do pensamento mágico dos indígenas, seja pela sua amizade com Evangeline, seja porque sua enteada é membro da etnia local e está o tempo todo desafiando a mãe por não deixá-la viver abertamente suas raízes.
Se, por um lado, os homens locais foram cooptados pela mineradora, por ser esta a responsáveis pelos seus salários, por outro, as mulheres indígenas, invisibilizadas por realizarem trabalhos subalternos como o de limpeza, sabem muito bem que a sobrevivência de seu povo depende das condições de vida da população local.
Muito dinheiro envolvido nos crimes de True Detective
A trama de True Detective vai se desenvolvendo em torno da relação entre as mortes de Annie K. e dos cientistas. No último episódio, o mistério é resolvido. Em um dia de trabalho de limpeza na estação científica Tsalal, Annie acaba encontrando, em um local secreto, documentos que mostravam que a Tsalal, a mando da mineradora Silver Sky, sua financiadora, era responsável por falsificar dados sobre a toxicidade da água de reservas indígenas na cidade. Por consequência, isso vinha provocando o parto de vários bebês natimortos na comunidade.
Aos cientistas, interessava tanto proteger sua patrocinadora por razões econômicas, quanto manter a poluição por razões cientificas. O envenenamento da água com metais pesados também permitia que os pesquisadores conseguissem extrair microrganismos mais facilmente, favorecendo a pesquisa a que estavam dedicados, a descoberta da origem da vida. Esses cientistas acreditavam que, dada a importância de suas descobertas para a humanidade, qualquer sacrífico humano seria justificável. Por isso, ficaram enlouquecidos quando viram Annie K. destruindo seus achados e a mataram brutalmente.
O que ocorreu, porém com os cientistas? Quem ou o que os matou? As faxineiras amigas de Anne. Elas descobriram o que havia acontecido com amiga e resolveram se vingar. Sob a mira de armas, os levam para um lugar ermo, congelado, e os obrigam a tirarem a roupa. O gelo que eles tanto cultuavam por lhes fornecer a possibilidade de explicar a origem da vida, é o mesmo gelo que os mata.
Ruptura com modelos hegemônicos de pensamento
Contudo, nessa trama toda, cheia de nuances, deixei de fora muitos detalhes para privilegiar aquilo que para mim é o fundamental da série. Mas há um personagem secundário que merece ser mencionado, por ter relação direta com a mensagem sobre o papel das mulheres na defesa da vida e na luta contra o extrativismo. É Rose Aguineau, interpretada pela atriz Fiona Shaw. Ela é uma mulher branca que vive sozinha em uma cabana no meio do gelo e que recebe ocasionalmente a visita de seu marido morto, que lhe traz informações do além.
Em diálogo central à série, Rose diz a Evangelina que no passado havia sido uma cientista de sucesso. Entretanto, ela abandonou tudo quando se deu conta de que todas aquelas publicações que fazia eram mera perda de tempo, e a distanciavam do essencial da existência, seja consigo, seja com a natureza.
Assim, a personagem de Jodie Foster, Liz, finalmente abre seu coração para uma compreensão não exclusivamente racional dos fatos. De certa forma, a ex-cientista Rose mostra que todas as mulheres brancas podem, se quiserem, renunciar a seus privilégios no mundo capitalista patriarcal científico tecnológico, para se reencontrarem com o essencial da vida, a comunidade, a beleza e a paz de espírito.
Em breve, mais uma temporada de True Detective
Finalmente, não acho secundário o fato de a diretora e roteirista desta temporada True Detective ser mexicana. Issa Lopez, como todas as mulheres da América Latina, conhece bem a luta das mulheres indígenas contra o extrativismo e a destruição da natureza provocada pelas mineradoras transnacionais em nome do mercado e do capital. E, last but not least, como toda latino-americana, ela carrega a estética do realismo mágico na veia.
P.S.: HBO anunciou a quinta temporada, com novo elenco, mas com a mesma diretora. Promete!
Direção: Issa Lopez
Roteiro: Issa Lopez, Allan Page Arriaga
Edição: Mags Arnold
Fotografia: Florian Hoffmeister
Design de Produção: Daniel Taylor
Trilha Sonora: Vince Pope
Elenco: Jodie Foster, Kali Reis, Fiona Shaw, Finn Bennett