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Please like me

Última atualização: 28/06/2021

Muitas pessoas acreditam que suas histórias de vida podem interessar espectadores e leitores. Elas consideram que essas histórias são extraordinárias, por isso merecem ser contadas, lidas e assistidas. Claro que isso é possível. Mas essa possibilidade precisa considerar de qual tipo de história se trata e como ela é contada, e quais ideias a articulação entre os fatos está veiculando. Sobre essa questão, Please Like Me é uma das séries interessantes da Netflix porque encontrou a receita perfeita para atender às exigências de contar sua história e, ao mesmo tempo, defender uma ideia, e com a maior simplicidade. O que é muito mais difícil.

Porém, essa simplicidade é aparente. A parte visível é uma película fina que nos mostra alguns anos da vida de Josh (Josh Thomas), um rapaz australiano branco, gay e de classe média. Suas, digamos, “aventuras” não têm, aparentemente, nada de excepcional. Pelo contrário: em nenhum momento Josh se revela uma inteligência diferenciada, ou uma personalidade singular, ou acontece algo excepcional com ele. Nem a descoberta de que é gay, o que acontece no primeiro episódio da primeira temporada, assume o primeiro plano na série.

Please like me

Em resumo: Please Like Me não defende nenhuma bandeira, não constrói suspense, não tem uma grande lição ética, nem desenvolve grandes conflitos. O que a torna especial e ousada, então? A meu ver, a coragem de se mostrar humana, demasiado humana, é a grande marca de Please Like Me. Nesse sentido, me permito supor que a série inaugura uma espécie de segunda geração do politicamente correto. Explico.

Please Like Me e o politicamente correto no século 21

O politicamente correto é uma forma de discurso que se propõe ser mais humanizada na medida em que procura poupar os sentimentos, a dignidade, a intimidade etc. de pessoas que historicamente têm sido agredidas em sociedades desiguais. É claro que essas agressão acontece em muitos níveis, e não apenas na linguagem. Mas, como toda construção de mundo passa pela linguagem, considera-se que uma mudança de linguagem pode ajudar na mudança de pensamento fundamental para que as sociedades se transformem para melhor.

A segunda geração do politicamente correto se desloca da construção de uma linguagem que poupa o outro mais fragilizado e se volta para uma linguagem que expressa uma autocrítica por parte de quem sempre oprimiu. Josh é um homem jovem e branco, num país onde invasores europeus massacraram as populações originárias assim que lá chegaram. É gay, num tempo e num país em que isso não representa perigo de vida para muitos. É de família financeiramente abastada – um privilegiado, portanto. E não sente culpa alguma por nada disso. Aí já há uma grande ousadia na série, porque, sem as angústias existenciais causadas por uma sociedade repleta de injustiças, o que resta a discutir?

Please like me

Assisti a Please like me pensando na fala de um então candidato a presidente do Brasil, em entrevista ao Programa Roda Viva, da Rede Cultura: “eu nunca escravizei ninguém”. Não é dessa ausência de culpa racista, ignorante e cínica que estou falando. Falo de uma classe social sujos componentes já superaram, pelo diálogo e pela educação, as culpas do passado e não têm medo de olhar para as que ainda persistem no presente. Entretanto, mesmo num tempo que se propõe ser de renovação, por que as pessoas ainda estão tão doentes?

O que é sanidade mental?

Todo mundo que eu conheço tem em suas relações pessoas que agem, pensam e sentem como algum dos personagens de Please Like Me. São pessoas que não desejam estar fora do meio social, mas não se sentem preparadas para lidar com o cotidiano de uma sociedade contemporânea: os imprevistos nas vias urbanas, as longas esperas no call center, a atração irresistível pela comida fácil e engordativa, o desafio de conquistar a afeição de alguém. Dependendo da reação a esse sentimento tão comum, os especialistas têm dado o nome ora de ansiedade, ora de depressão.

A psicanalista Maria Rita Kehl, em seu livro O tempo e o cão, menciona a dificuldade de pessoas que se sentem assim para negociar com a vida: dificuldade de reconhecerem que não são perfeitas, que precisam se desligar de expectativas imaginárias dos outros, que não podem controlar se seus desejos serão realizados ou não, que nem todas as pessoas vão gostar delas (Please like me é o título mais perfeito que vi em anos). Dificuldade de controlar o futuro, as outras pessoas; dificuldade de se entregar ao acaso, ao que vier.

Please like me

Em diferentes graus, os personagens de Please Like Me apresentam essas dificuldades. Alguns deles estão numa condição tão triste que sequer conseguem estar presentes na vida em comum que tanto desejam. Isto mesmo: acabam se inviabilizando para a vida justamente por desejá-la demais. O conforto material que o capitalismo oferece aos de sua classe e raça compensa tanto sofrimento emocional? Interessantemente, a personagem que parece menos preocupada em controlar a vida é justamente a que veio de fora da Austrália ocidentalizada e cristã: a esposa do pai de Josh, Mae (Renee Lim). Mais um detalhe da autocrítica que a segunda geração do politicamente correto procura fazer.

Tentando viver com prazer, mesmo assim

Todos os episódios de Please Like Me se intitulam com comidas, ou tipos de comida. Onipresente na série, a comida é algo que iguala e aproxima os personagens. Todos gostam de cozinhar e têm prazer em comer, mesmo que não tenham mais nenhum outro prazer na vida. A comida é uma espécie de salvação para eles junto ao espectador: se eles ainda conseguem se conectar a alguma coisa, é porque ainda têm jeito, então vale a pena torcermos por eles. Comida é algo muito sério em Please Like Me: pode-se dizer que é a única relação realmente saudável que alguns personagens têm com a vida.

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O relacionamento que a série tem com a comida é uma das marcas de sua originalidade. Comer é tão necessário quanto básico e corriqueiro. Analogamente, a série tira das situações do dia a dia, aquelas para as quais não damos quase nenhuma atenção, a provocação para refletirmos sobre o peso da contemporaneidade e suas exigências de subjetividade para viver nela. Sobre essa reflexão, se há algum método para usufruir da série, eu recomendo a psicanálise: através dela, podemos revelar a nós mesmos nossa verdade mais profunda e indecifrável, escondida sob  sentimentos, discursos e decisões às quais normalmente não damos a menor importância.

As quatro temporadas de Please Like Me estão disponíveis na Netflix.


Ficha Técnica
Please like me (2013-2016) – Austrália
Direção: Matthew Saville, Josh Thomas
Roteiro: Liz Doran, Hannah Gadsby e outros
Edição: Julie-Anne De Ruvo
Fotografia: Matthew Temple
Design de Produção: Penny Southgate
Trilha Sonora: Bryony Marks
Elenco: Josh Thomas, Debra Lawrance, Thomas Ward, Caitlin Stasey, David Roberts, Renee Lim, Hannah Gadsby

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