Torero imagem destacada

Tenho Medo Toureiro

Última atualização: 27/06/2021

Assistindo a Tenho Medo Toureiro, de Rodrigo Sepúlveda (2020), disponível na Amazon Prime Video, em algum momento me lembrei de uma cena de um outro filme, Marvin, de Anne Fontaine (2017), em que pessoas LGBTQIA+ relatam suas experiências. Lá, um rapaz negro e gay afirma algo parecido com isto: “Se você é negro, você apanha na rua, e em casa te consolam. Mas, se você é gay, você apanha na rua, e em casa te batem mais ainda”.

Tenho Medo Toureiro parte dessa afirmação. Mas no filme ela se atrela ao fato de que, dependendo das condições políticas do país em que a pessoa LGBTQIA+ vive, ela apanhará mais ainda na rua, isso se não a matarem por lá mesmo.

Esse é o cenário básico, mas pode ser generalizado e aprofundado. Escrevo este texto pouco depois de assistir ao jogo de futebol masculino entre as seleções alemã e húngara pela Eurocopa. Homenageando o mês do orgulho LGBTQIA+, o capitão da seleção alemã Manuel Neuer está usando uma braçadeira com o arco-íris do movimento. A ameaça de sanção da FIFA foi imediata, mas Neuer continuou usando a braçadeira mesmo assim.

Tenho medo toureiro

No jogo entre Alemanha e Hungria, alguns torcedores húngaros, em sintonia com o governo (não apenas)  homofóbico de Victor Orbán, fizeram manifestações anti-LGBTQIA+. Por essas e outras, entende-se por que Orbán ainda está no poder.

Menos democracia, mais interdição

Os estudos em sexualidade e sociedade são unânimes em afirmar que as ditaduras dizem respeito também a controle dos corpos. Nesse sentido, posso arriscar dizer que, quanto mais precárias as condições de democracia em um país, maior esse controle. Com efeito, há diferenças em relação a quais corpos são controlados, mas sempre se trata de controle do desejo, inclusive o dos homens. O foco é na sexualidade e no gênero, mas sempre abarca toda forma de desejo, porque corpos potentes não se dobram à opressão com a facilidade que o opressor precisa.

O espectador precisa ter essa ideia em mente para compreender a presença gigante de Alfredo Castro, um dos maiores atores chilenos da atualidade, senão o maior, em Tenho Medo Toureiro. Numa das cenas do filme, Rodrigo Sepúlveda (também roteirista do filme, a partir do livro de Pedro Lemebel) é brilhante em contrastar os corpos de Castro, encarnando La Loca del Frente, e de Leonardo Ortizgris, no papel do ativista Carlos, interesse amoroso de La Loca.

 

tenho medo toureiro

Carlos é descrito como de sexualidade não definida, mas é cisgênero. Assim, seu caminhar firme é o da pessoa cujo corpo não é atingido pela dor de ser quem é, nem no Chile de Pinochet, nem em lugar nenhum. Em contrapartida, La Loca caminha envergada, sem firmeza, manifestando o medo constante de quem tem um corpo interditado pela ditadura que manteve suas patas sobre o Chile por 17 anos. Essa brevíssima mas poderosa cena resume o contexto mais amplo de diferenciação civilizatória entre pessoas como Carlos e La Loca: para ela, o regime sempre será de exceção.

A ditadura como diegese

Todos os acontecimentos ao longo do filme mostram os processos existenciais e sociais que manifestam e dão materialidade à diferença entre Carlos e La Loca. A ditadura emerge como diegese: em especial, a Santiago onde La Loca transita é a região das construções antigas, empobrecidas,  envelhecidas e sem manutenção. A capacidade de síntese de Sepúlveda, que já descrevi acima, aparece de novo, por exemplo, na imagem destacada deste texto. A rua onde La Loca mora é ocupada por prédios velhíssimos e decadentes, e o entulho que cai deles se espalha pela calçada.

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Chamam a atenção as frágeis ripas que sustentam as paredes aparentemente prestes a cair. A própria casa de La Loca precisa de reformas urgentemente. Espanta-nos ver que ela ainda passa a tranca numa porta que pode cair a qualquer momento. Em alguma medida, essa imagem de construções em semi-ruínas sintetiza a decadência da ditadura chilena. As instâncias centrais de poder são fortemente afetadas pelos atentados. Todavia, o regime segue de pé e ainda pode fazer muito mal, ao país, a Carlos, e a La Loca e suas amigas.

Tenho Medo Toureiro é um filme sobre coragem

Entretanto, Sepúlveda constrói um filme que mostra a capacidade do ser humano de afeiçoar-se e sentir desejo mesmo num tempo em que amar, sempre um ato de ousadia, se torna também um risco de vida. E, nisso, Alfredo Castro é perfeito no equilíbrio entre a entrega de La Loca e a certeza de que seu coração será machucado ao final. De um lado, as ilusões mortas pelo sofrimento que o contexto político agrava. De outro, a iniciativa de agarrar-se a, talvez, um fluxo final de prazer.

Tenho medo toureiro

E, junto com La Loca, embarcamos nas viagens que Carlos lhe oferece em troca de sua ajuda ao movimento de resistência armada. Torcemos para que ela não se empolgue demais, mas não perca as chances de ser feliz pelo menos um pouquinho. Seja como for, aqui e ali La Loca dá mostras de que sobreviverá: desafiando o guarda que lhe manda escolher onde vai ficar, entre as mulheres ou entre os homens, a personagem mostra mais uma vez, e esse é mais um acerto de Sepúlveda, sua coragem: sabemos que, numa ditadura, o que mais se deve temer é o guarda da esquina.

Para assistir a Tenho Medo Toureiro, clique aqui.


Ficha Técnica
Tengo Miedo Torero (2020) – Chile
Direção: Rodrigo Sepúlveda
Roteiro: Rodrigo Sepúlveda, Juan Elias Tovar, Amparo Noguera, Luiz Gnecco
Edição: Ana Godoy, Rosario Suárez
Fotografia: Sergio Armstrong
Design de Produção: Carolina Provoste
Trilha Sonora: Pedro Aznar
Elenco: Alfredo Castro, Leonardo Ortizgris,

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