The Chair

Última atualização: 08/09/2021

Antes de apresentar minhas opiniões sobre The Chair, minissérie disponível na Netflix, deixo posto que sou Professora por opção. Faz parte de minha personalidade o desejo e o prazer não apenas por adquirir e construir conhecimento, mas também por partilhá-lo. Durante toda a minha carreira, senti que essa vida me torna ainda mais emancipada naquilo que cotidianamente faço: aprender. Sinto-me rejuvenescida na companhia de meus alunos. E todos os Professores que já conheci na vida partilham das mesmas convicções.

Por isso, é no mínimo imbecil a afirmação de que um Professor o é por falta de opções e talentos. A capacidade de apaixonar-se por algo e comunicar essa paixão, transformando-a em conhecimento, é por si só um talento gigantesco, privilégio de poucos. Toda a miséria social que cerca nossa profissão, principalmente no Brasil, não encontra nenhum traço no que se refere ao nosso sentimento de estar com os alunos, ensinando e aprendendo continuamente. O que nos adoece e mata vem do pânico que os poderosos têm de um povo instruído e conhecedor de seus direitos e deveres.

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As pessoas mais brilhantes que já viveram foram, em imensa medida, Professores. Por exemplo, grandes compositores elaboraram algumas de suas obras-primas no intuito de ensinar a seus alunos. Quem estuda música tem, como dever de casa, partituras sublimes de pelo menos 300 anos. A centelha de muitas ideias que mudaram o mundo para melhor foi acesa em sala de aula.  Livros científicos clássicos resultam de teses de doutorado ou, não raro, de compilações de anotações para o preparo de aulas. A mágica do aprendizado pode acontecer em qualquer lugar, mas o tablado e a carteira é que são seus lugares por excelência e tradição.

Toda aparência engana

Essas premissas permeiam os seis episódios de The Chair. A energia do amor ao conhecimento e ao ensino circunda as ações e relações dos personagens, e também seus sentimentos de afeto, frustração e desespero. Não poder mais ensinar é, para os que se sentem ameaçados de perderem seus postos, algo muito mais trágico do que ficar sem salário.

Narrar histórias em torno dessa energia é apenas uma das grandes virtudes dessa brilhante minissérie, porque há outras. Aliás, The Chair tem cinco roteiristas, mesmo compondo-se de seis episódios de mais ou menos trinta minutos cada um, o que pode sempre ser sinal de roteiro confuso. Sem dúvida, para o excelente resultado que vemos na tela, imagino como eles devem ter dialogado (espero) em função de definirem uma mesma linha temática e diegética atravessando toda a trama.

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Essa excelência inclui o escape ao estereótipo do tempo como linearidade. The Chair não situa a vaidade, a inveja ou a estagnação intelectual numa determinada faixa etária. Passado, presente e futuro coexistem como forças em constante embate. Personagens jovens se debatem agarrados a ideias ultrapassadas sobre como se constrói o conhecimento, e a posturas corruptas sobre como lidar com hierarquias. Em função disso, terminam por repudiar, jogar no lixo exatamente o que dizem buscar na universidade: o conhecimento de ponta.

E, opostamente, há professores antigos antenados com o estado da arte da filosofia, da arte e da ciência, cientes de que só o que permanece é a mudança. Uma, entre eles, busca saber qual aluno a criticou, não em busca de retaliação, mas sim de lhe dar uma resposta, algo que é seu absoluto direito.

The Chair ensina como fazer as perguntas certas

Nos âmbitos de vivência acadêmica que focaliza, The Chair opta por fazer perguntas, e corajosamente não propõe respostas – principalmente, a meu ver, porque toca em debates abertos. São debates, mas acho que eu os descreveria melhor se os denominasse “feridas”, porque aquela opção resulta numa estrutura fundada sobre um grande paradoxo. Falo dele abaixo.

As ciências humanas desenvolvidas nas últimas décadas nos trazem ganhos conceituais gigantescos em relação ao entendimento do que é injustiça, desigualdade e preconceito. Hoje conseguimos dar nomes para uma série de violências que por séculos foram naturalizadas – violência contra as mulheres, não-brancos, não-heteronormativos, deficientes físicos e intelectuais… Entretanto, esses ganhos conceituais, ao mesmo tempo, fazem emergir as dores pessoais de um passado e um presente de violência, que sofremos com certeza, mas que, antes, não podíamos reconhecer, porque não sabíamos nomear.

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O martírio gigante que esse reconhecimento provoca é o outro lado da moeda do ganho conceitual. Já constatamos que foi racismo, machismo, homofobia, gordofobia etc. aquilo que sofremos e nos causou tanto trauma e miséria existencial, material e física. Conseguiremos suportar a dor que necessariamente deriva dessa constatação? Superaremos o trauma que a consciência desse sofrimento nos causa? Ou ele permanecerá como chaga que nunca cicatriza e nos acompanhará por toda a vida, impondo que seguidamente inflijamos sobre nós mesmos, de novo e de novo, o sofrimento que outros uma vez nos causaram?

Pense o que você quiser

Após termos feito essas perguntas, para entrar de forma madura nos debates e feridas abertas que caracterizam a construção do conhecimento na contemporaneidade, resta o problema de como continuar a existir numa sociedade cujos pilares tradicionais estão sendo postos por terra. E de como evitar que, no afã de sermos contemporâneos, terminemos por ser mais reacionários e arrogantes do que aqueles cujo reacionarismo tanto desprezamos.

Em termos estritos, a crise, na minissérie, se desencadeia com a viralização de um meme produzido sobre um gesto fortuito de um professor em plena aula. Algo análogo ao que aconteceu recentemente aqui no Brasil. Novamente, The Chair é genial em não nos impor qualquer versão sobre a história, confiando inclusive em nossos conhecimentos prévios acerca das tantas vezes em que já vimos isso acontecer. Pense você, espectador, sobre o meme e o professor, o que você quiser.

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O que se dá com essa viralização, essa sim, segue um mesmo roteiro: repúdio, cancelamento, desmoralização, demissão. E é aí que a série se torna praticamente uma narrativa de terror, com a exibição de uma superioridade moral (termo do Professor Wilson Gomes, da UFBA) arrogada por pessoas que, podendo inserir o fato numa dimensão argumentativa, escolheram partir para a acusação e a punição pura e simples.

Todos vamos perder

Em termos amplos, a crise revela os perigos escondidos no debate proposto pelas ciências sociais mas incorporado sem reflexão no cotidiano, visto que, como eu disse acima, ele ainda está aberto, e seu encerramento ainda está muito, muito distante.  Um desses perigos, o que justifica a série, vem de uma incapacidade, ainda, de reconhecer quem está em seu lugar de privilégio e deseja sair dele, mas, perdido no furacão dos acontecimentos, ainda não sabe como fazer isso.

E, do outro lado, outra incapacidade, a saber, a de construir o necessário perdão coletivo. Sobretudo, o perdão pelo racismo que estrutura sociedades como a estadunidense e a brasileira. Talvez nada mais hoje seja tão difícil. Se os descendentes de pessoas escravizadas de fato nos cobrarem na mesma medida os horrores que nossos antepassados brancos lhes impuseram, não sobrará pedra sobre pedra. Por essa não cobrança, algo que talvez não mereçamos ainda, devemos ser-lhes eternamente gratos.

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The Chair mostra que, enquanto esses aprendizados coletivos não acontecerem, acontecerá o que Paulo Freire previu e a série descreve à perfeição: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido e se tornar opressor”. Acontecerá também o que foi dito pela ex-presidenta Dilma Roussef, e que o tempo revelou como terrível vaticínio: “Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.”

Em The Chair, como na vida, quem mais aprende é o professor

Na impossibilidade de propor mudanças coletivas, pelos motivos que expus acima, The Chair aposta em transformações individuais. Com efeito, elas vêm, como mais uma atitude corajosa da minissérie (a mais corajosa, talvez), na figura do macho alfa do departamento. Ele vê de repente sua carreira ruir abaixo com a viralização de um meme. Ingênuo, como a maioria dos que sempre viram o mundo de seus lugares de privilégio, ele passa a maior parte da minissérie recusando-se a entender o que lhe acontece. Até que, em algum momento, finalmente demonstra que, sendo professor por vocação, ele é uma pessoa aberta ao aprendizado.

E esse aprendizado vem no encontro entre personagens mais bonito que vi este ano: o que inclui, de um lado, um homem a caminho da velhice que perdeu o último alicerce de sua vida, e, de outro, uma menina de sete anos de idade.

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É brilhante e belíssima a sequência em que esse homem entende que deverá se tornar uma pessoa diferente para interagir verdadeiramente com a menina (e com a vida). Apenas por ela, valeria a pena assistir à minissérie inteira. O que ele recebe de bônus é o aprendizado de como lidar com as perdas e superar a dor narcísica que sair de seu lugar de privilégio lhe causa. Acrescento aqui que ele poderia seguir até o fim sem sair desse lugar, e é isso o que normalmente acontece. A beleza do personagem recai justamente sobre ele ter sido quem mais se transformou. Ele, homem branco heterossexual, em torno de quem o mundo tem girado por milhares de anos.

No caminho da cura e do perdão

Na figura desse professor, está a reflexão que The Chair propõe. Os fatos mostram que ainda não é possível, neste momento, que o conhecimento acumulado pela humanidade supere as dores pessoais que esse próprio conhecimento, por efeito, intensificou. E isso ocorre também porque os opressores permanecem não sendo reconhecidos por muita gente.

Busquemos, então, nos transformarmos a nós mesmos, procurando cura para nossa ignorância, e perdão para nossos erros e culpas. Assim, talvez a cura e o perdão nos ajudem a olhar para nós mesmos e nossos semelhantes com generosidade. Porque, afinal, a História nos ensina, essa generosidade é que nos permitirá seguirmos como civilização.

 

Agradeço ao Professor e crítico de cinema Filippo Pitanga pelo riquíssimo diálogo que me ajudou a estruturar este texto.


Ficha Técnica
The Chair (2021) – Estados Unidos
Direção: Daniel Gray Longino
Roteiro: Amanda Peet, Jennifer Kim, Andrea Troyer, Annie Julia Wyman, Richard Robbins
Edição: Jay Deuby, Stacy Moon
Fotografia: Jim Frohna
Design de Produção: Grace Alie
Trilha Sonora: Stephanie Economou
Elenco: Sandra Oh, Jay Duplass, Everly Carnagilla, Holland Taylor, Nana Mensah, David Morse

 

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