‘Fome’: os zumbis nacionais de Márcio Benjamin
Última atualização: 25/03/2021
As narrativas de horror são cenário constante para discussões sociais e políticas. Ao mapear o cinema de zumbis em sua existência de quase cem anos, encontraremos em alguns títulos que dialogam com o tempo e o local em que os filmes são ambientados e realizados. Trazendo para o Brasil esse monstro do imaginário do terror, o potiguar Márcio Benjamin narra em Fome uma epidemia zumbi no meio do sertão, em alguma cidade interiorana no nordeste brasileiro.
Os cenários no qual o romance se desenrola são de simples compreensão por qualquer brasileiro que já esteve em cidades do interior de seu estado. Nos deparamos com uma rua principal, na qual há uma igreja, e ruas transversais com poucas casas, todas antigas; ao olhar em direção ao campo, uma ou outra residência. Tudo muito quieto, calmo, um lugar que parece funcionar em um tempo e espaço diferentes dos que encaramos nas grandes metrópoles.
O monstro da fome
Naquele local conseguimos imaginar uma mula com o pescoço em chamas trotando pela rua principal, mas não um morto-vivo canibalizando uma vítima que o deixa se aproximar por não se atentar para o risco que corre. E é nesse clima de calmaria, seca e calor que Márcio Benjamin insere os renascido da morte, mas não sem antes imprimir neles uma característica essencial para sua existência, a fome.
O que move os mortos são a fome incessante que não passa mesmo após a vida: pelo contrário, ela aumenta. De acordo com uma das personagens, é um vazio que não o deixa pensar em mais nada, uma cólica que o consumia. Aqui, a fome mata até quem está morto.
Diante da pandemia do novo coronavírus, o Brasil caminha de volta para o mapa da fome. A estimativa, de maio de 2020, era de que ao fim do ano 5,4 milhões de pessoas estivessem na extrema pobreza. A realidade não é tão distópica quanto a obra de Márcio, mas carrega em si medos reais, que assombram tanto quanto mortos canibais.
Homens e zumbis, ambos vítimas da fome
Em uma história de monstros, a eterna dicotomia entre o bem e o mal seria a maneira mais fácil de construir as relações de medo. Entretanto, nos deparamos com seres tão complexos em sua vida (e morte) que essa simples divisão não se aplica.
Um exemplo é Fátima, mulher que mora na cidade e volta à vila para visitar sua mãe, ou até mesmo Paranhos, delegado local, ambos pessoas que levam a vida da maneira que podem. Eles não têm luxos, apenas sobrevivem, dia após dia, com o que está ao seu alcance.
Essas personagens são pessoas que precisam resolver os impasses assim que estes surgem antes de sequer terem a oportunidade de saber de onde eles vieram. Seria essa uma característica dos sertanejos, população pobre e marginalizada, que existe e resiste? Creio que sim, pois as criaturas (mortos) são movidas pela mesma ação.
Elas não são apenas mortos sem nome, são os filhos, mães, moradores e moradores de pedaços do país, perdidos no tempo. A fome os mata, mas também o abandono da cidade, quando a festa da padroeira é cancelada e a sobrevida anual da chegada dos visitantes ou retorno dos moradores não acontece.
Regionalismo e identidade na literatura de Márcio Benjamin
A maneira como o texto é escrito se assemelha a linguagem oral, como se alguém contasse um “causo de assombro”. Essa é uma característica do autor, pois em Maldito Sertão, antologia de contos, encontramos a mesma característica.
Ao optar por essa linguagem, o autor consegue imprimir identidade em sua obra, afastando o texto de uma linguagem rebuscadas. Dessa maneira, Fome é deixada ali, no quintal, em um dia de férias na roça da vó, no qual ela conta algo que dizem ter acontecido há muitos e muitos anos.
Assim, Fome, de Márcio Benjamin, aterroriza e emociona ao colocar em um mesmo plano zumbis, políticos corruptos, cidadãos comuns e mazelas sociais.
Autor: Márcio Benjamin
Gênero: Terror, Ficção
Primeira publicação: 2017
Edição brasileira: Jovens Escribas
Número de páginas: 189
Idioma: Português
ISBN: 978-85-6650-598-6