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‘Ponto-final’: um ensaio sobre o bolsonarês

Última atualização: 13/02/2021

Está muito difícil entender o momento por que estamos passando no Brasil. Mas tentativas de explicação é o que não falta. Grandes intelectuais brasileiros dedicam-se a essa tarefa. E, como eles são realmente grandes, passa longe deles a pretensão de oferecer respostas definitivas. Mas isso não torna sua leitura menos fascinante. É o caso do novo livro de Marcos Nobre, intitulado Ponto-final: A guerra de Bolsonaro contra a democracia, da editora Todavia.

Nobre, assim como tantos outros, dentro do seu lugar teórico de fala, oferece pistas de observação do cenário político-social em que estamos confinados. Sua busca é sempre por alternativas políticas ao grupo que está no poder neste momento. E seu texto ainda oferece um bônus: nos ajuda a aprender a pensar.

Ponto-final: escrevendo no olho do furacão

Ponto-final é escrito por um Professor Livre-docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp que já participou de vários debates sobre a política brasileira contemporânea, como esta excelente entrevista e esta live em que salta aos olhos sua soberba capacidade de síntese.

O caráter ensaístico do texto de Nobre decorre de sua escolha por recortar cirurgicamente uma questão e desenvolvê-la ampliando ao máximo possível o campo de observação. Mas sem riscos de cair na armadilha de acreditar que pode dar conta de todos os problemas do Brasil em uma obra só. Entretanto, a humildade dessa ação não apaga a imensa sofisticação de sua escrita, cuja simplicidade formal convida a um mergulho reflexivo para muito além do déficit de atenção imposto pela internet.

bolsonaro atacando rede globo

Marcos Nobre se reconhece como um articulista da contemporaneidade. Por isso, sabe que lança suas ideias num tempo em que os escândalos envelhecem no tempo de horas. Durante esse período, são abafados por uma cortina de fumaça que dura apenas até que sobrevenha um novo escândalo. Em acordo com esse tempo, Ponto-final foi primeiramente publicado como um E-book, e com isso se beneficiou da portabilidade que muitas vezes o papel não permite.

Leituras também requerem recortes precisos

A leitura de Ponto-final é útil aos que, como eu, sabem que o bolsonarismo pode e precisa ser observado também de uma perspectiva linguística e conceitual. Ou, em palavras relacionadas ao campo de pesquisa em que me incluo, que o bolsonarismo também diz respeito a modos e estruturas de pensamento. Identificar esses modos ajuda a compreender o bolsonarismo como uma forma de cognição. Portanto, essas estruturas são o foco deste meu artigo, embora não estejam explícitas no texto de Nobre.

bolsonaro live leite condensado

Nobre seleciona algumas palavras empregadas recorrentemente por Jair Bolsonaro, desdobrando seus significados. E nossa ciência dos fatos históricos a que esses significados se referem nos permite acompanhá-lo no mergulho de conhecimento a que seu texto nos convida. Seu ponto de partida não pode ser mais atrativo: a premissa de que há uma lógica interna aos discursos que sustentam as ações do homem que está no Palácio do Planalto pelo menos até 2022, e também de quem o apoia: “Há método no caos […]. Ou, mais exatamente, […] o caos é o método.”

E, já que o caos é o método, ele pode ser descrito.

Cada palavra se refere a apenas um conceito? Não…

O objeto de estudo de Marcos Nobre é o próprio Jair Bolsonaro. Sua justificativa já está posta no título do texto – Ponto-final -, que é uma das falas do presidente aos jornalistas para silenciá-los. Está presente também em seu primeiro enunciado: “É fácil chamar Bolsonaro de burro, de louco, ou das duas coisas. Só que isso não ajuda em nada a entender o que estamos vivendo”. Para eliminarmos a possibilidade de loucura ou pouca inteligência, é preciso buscarmos uma lógica inerente a um pensamento aparentemente caótico. A busca de Nobre nos traz um ensinamento relevante, que serve para todos os momentos da vida: o significado que uma pessoa define para uma determinada palavra não é necessariamente o mesmo que outras pessoas assumem para essa mesma palavra.


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Essa ideia é uma grande motivação para mapear a lógica conceitual interna do discurso de Jair Bolsonaro. Para o autor, “passamos a aceitar pensar e debater nos termos dele”. Os termos, bem sabemos, são os da língua portuguesa. Mas será que todos os falantes do português, ao ouvir estes termos e pronunciá-los, os relacionam às mesmas imagens mentais? Bolsonaro também pronuncia palavras como povo, democracia. Mas que povo é esse de que ele está falando? Que democracia é essa? Reconhecer como lógica, e como uma forma de racionalidade, o discurso de Bolsonaro possibilita descrevê-lo, como parte do empreendimento maior de descrever seu projeto de poder.

A metáfora primordial de Ponto-final

Para Nobre, os conceitos referentes a algumas palavras usadas por Bolsonaro são centrais ao entendimento de sua racionalidade. Política, para Bolsonaro, é guerra. Se Nobre estudasse cognição, faria essa afirmação definindo essa relação entre política e guerra como sendo uma metáfora, conforme descrita pelos cognitivistas George Lakoff e Mark Johnson no livro Metáforas da vida cotidiana. Uma metáfora é uma construção de significado em que o universo de experiências que usamos para entender um conceito é usado para entender outro.

bolsonaro atacando folha

Para a metáfora POLÍTICA É GUERRA (Lakoff e Johnson propuseram a notação em caixa alta), entende-se o universo da política como se fosse o universo da guerra. Assim, adversários tornam-se inimigos. Cada debate torna-se uma batalha, que é vencida com a eliminação do oponente. O uso de armas letais torna-se lícito. Toda violência empregada nas disputas torna-se aceitável. Uma série de falas de Jair Bolsonaro ao longo de sua vida pública evidencia essas crenças.

Mas a guerra como molde do pensamento de Bolsonaro não se limita à política. Numa decorrência, digamos, natural,  o povo, para Bolsonaro, se limita aos brasileiros que concordam com ele, ou seja, que não são seus inimigos. Todo o resto também pode ser eliminado. Segundo Nobre, essa ideia sustenta a lógica negacionista manifestada por Bolsonaro desde o início da epidemia da COVID-19: os que concordam com ele viverão porque lançarão mão do coquetel de substâncias inócuas chamado tratamento precoce. O resto, os que não concordam, não são o povo, portanto podem adoecer e morrer.

Mapeando o caos

Analogamente, o verbo governar também tem lugar cativo na metáfora POLÍTICA É GUERRA: “governar é submeter o resto à vontade de um grupo”, afirma Nobre. O eleitorado dividido em três partes – os eleitores de Bolsonaro, os inimigos e os neutros – favorece a visualização de quem precisa ser agradado para permanecer fiel. No entender de Nobre (e de muitos articulistas, aliás), não interessa a Bolsonaro convencer os componentes das outras partes a votar nele. Isso é evidente, penso eu: se ele se interessasse por essas pessoas, política para ele não seria guerra.

O cultivo dessa divisão tripartite e estanque produz um efeito bastante coerente. A divisão permite a Bolsonaro permanecer fora do sistema, outra palavra que para o presidente tem uma acepção bastante peculiar. “Sistema” é a estrutura institucional brasileira; é, no léxico bolsonariano, o coletivo de inimigos. Para seus eleitores, Bolsonaro precisa estar cognitivamente fora dessa estrutura. Essa condição é importante para a congruência de seu discurso e decorrente fidelidade de seus seguidores, que compõem aquele terço que lhe interessa. Ele ter sido deputado federal por 28 anos, elegendo-se de acordo com as regras do sistema, é um mero detalhe.

bolsonaro cloroquina ema

Em Ponto-final, Nobre deixa claro que é importante mencionar o sistema como o lugar onde Bolsonaro se debate, equilibrando-se no paradoxo (também em termos) de ser um “presidente antissistema”. Tal sistema, no enquadre proposto em seu texto, é a materialização da democracia tal como a entendemos. Esse dado é fundamental para confirmarmos a ideia de que a palavra “democracia”, no discurso de Bolsonaro, não é a democracia como normalmente entendemos. Democracia, para Bolsonaro, é o regime que vigorou durante a ditadura militar. Essa definição confirma a racionalidade bolsonarista em torno da metáfora POLÍTICA É GUERRA.

Aprendendo a traduzir

Ponto-final identifica em Bolsonaro a crença de que o sistema, as instituições e, em decorrência, a Constituição de 1988, que é o coletivo de leis que as garante, são “parte da falsa democracia”. Se a verdadeira democracia era aquela que prevaleceu durante a ditadura militar, então “a redemocratização é a responsável por todos os males do país”. Dessa forma, toda a formulação argumentativa apresentada por Nobre presta-se a lapidar o grande enunciado de seu ensaio, que, não coincidentemente, é um enunciado cognitivista: “Quem conseguir entender a expressão ‘a democracia da ditadura era a verdadeira democracia’ conseguirá entender Bolsonaro.”

bolsonaro tossindo

Compreendendo as definições acima, conseguimos identificar plenamente o, digamos, “bolsonarês”, em enunciados como  “O sistema precisa ser derrotado para que se instaure de vez a ‘autêntica representação do verdadeiro povo'”. Em português corrente, essa frase se traduz assim: “A democracia precisa ser derrotada para que se instaure mais uma vez a ditadura que privilegiará a uma minoria em detrimento da maioria da população”.

A linguagem é a vitrine da racionalidade

Visto como uma espécie de glossário do ideário bolsonarista, o ensaio de Nobre nos ajuda, no fim das contas, a identificar o plano de poder de quem ocupa o cargo máximo da nação neste momento. Fazendo isso, esse glossário amarra com firmeza o texto a seu subtítulo: “A guerra de Bolsonaro contra a democracia”. A guerra que Nobre menciona é como a entendemos. E a democracia, esta é a que temos do presente, que corre o risco de acabar como ideia e como realidade, para dar lugar à democracia do passado. Mas esta última não passa de distorção, de um tempo ilusório, escondido atrás da censura e da falácia de desenvolvimento e riqueza.

bolsonaro verme

Dessa forma, mesmo numa leitura que recorta apenas as palavras, ainda assim se atesta a relevância de um trabalho como o de Marcos Nobre. Evidentemente, sua análise linguística e conceitual apenas arranha a ponta do iceberg perdido no mar, em cima do qual tentamos definir algum rumo. Mas nos auxilia a reconhecer o que se encontra na parte submersa desse iceberg, sem medo de errarmos em nosso julgamento. Se bem que, nesse pormenor, estarmos certos não nos trará nenhum orgulho.


Ficha Técnica
Ponto-final: A guerra de Bolsonaro conra a democracia – Brasil
Autor: Marcos Nobre
Gênero: Situação política no Brasil, Democracia, Crise Política
Primeira publicação: 2020
Edição brasileira: Todavia
Número de páginas: 80
Idioma: Português
ISBN: 978-65-5692-014-6

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