last of us destacada

The last of us

Última atualização: 04/04/2023

A riqueza de uma obra de ficção como The last of us já se anuncia com o fato de que, mesmo sendo série adaptada de um game (resenhado aqui no Longa História por Marina Pais), pode se encaixar em muitas categorias. Road fiction, terror, ficção científica, crítica social e drama familiar são alguns dos gêneros atribuíveis para a mais que bem-sucedida série da HBO.

Prefiro não lidar com essas possíveis categorias, embora as diversas classificações possíveis para The last of us estejam subentendidas em minha resenha. Tendo em mãos o fio de Ariadne, seguirei pelo quebra-cabeças que a série oferece à medida que os cativantes protagonistas, aos quais Pedro Pascal e Bella Ramsey emprestam seu carisma, percorrem as amplidões de um país que não existe mais.

A rigor, toda road fiction mescla o percurso espacial traçado por um ou mais personagens a um percurso também emocional, existencial. Em The last of us, esses percursos também se mesclam. Joel Miller (Pascal) responsabiliza-se em atravessar os Estados Unidos levando a adolescente Ellie Williams (Ramsey) até o laboratório onde poderá ser criada, com seu sangue, uma vacina que curará uma epidemia que pode dizimar toda a raça humana. Sem dúvida, a viagem os aproximará e redespertará Joel para a paternidade que lhe foi negada com a morte precoce de sua filha.

 

Entretanto, há uma dimensão bastante ampliada na construção da narrativa em The last of us, que nos remete a uma jornada que é de nós todos, seres humanos. Uma jornada que para nós é uma bênção, já que nos permitiu construir a humanidade. Mas que ao mesmo tempo também é uma maldição, já que nos obriga a vivermos todos juntos, com todos os choques, mais ou menos violentos, que toda convivência implica.

Zumbis são ao mesmo tempo iguais e diferentes de nós

The last of us não é a primeira nem a última história de zumbis produzida para a TV, aberta ou paga. É inevitável perguntar por que, com tanta oferta de histórias sobre esses seres míticos, seguimos ainda fascinados por eles. Há quem afirme que os infectados pelo fungo cordyceps, que destrói as mentes e transforma pessoas em parasitas, não seriam propriamente zumbis. Porém, para a pergunta de um dos personagens da série: “se eu for infectado, eu continuarei a ser eu mesmo?”, não é possível dar nenhuma resposta.

Entre os estudiosos do campo civilizatório, há os interessados em identificar os modos de pensamento que nos permitiram inaugurar, há mais ou menos cinco mil anos, o que hoje chamamos civilização. A qual, ao longo dos séculos, acumulou pequenos e grandes passos que proporcionaram (r)evoluções intelectuais, éticas, sociais, morais, tecnológicas etc.

Para alguns desses estudiosos, a civilização se expandiu também porque, paulatinamente, povos que se julgavam profundamente diferentes passaram a reconhecer semelhanças entre si. Eventualmente, esse processo transformou em muitos sentidos o temor, a violência e a subjugação em diálogo, política e ocupação comum de mesmos territórios.

Dessa maneira, como mitos, os zumbis seriam esses personagens em grande medida diferentes, mas de alguma forma iguais a nós. Somos saudáveis; eles estão infectados com algo que desconhecemos. Estamos inequivocamente vivos; deles não se pode dizer o mesmo. Eles nos reconhecem apenas como inimigos, ou alimento, ou hospedeiros, ou outras coisas análogas. De nossa vez, os reconhecemos apenas como ameaças, portanto precisamos destruí-los. Mas, em algum momento, eles já foram humanos, portanto guardam algo de nós. E, na direção oposta, nada garante que jamais nos tornemos como eles.

Nesse sentido, os zumbis são nosso problema civilizatório levado às últimas consequências: aquelas que levam à destruição de tudo, da História, das sociedades e do planeta.

Por que The last of us nos cativou

Um dos elementos importantes de The last of us é o de integrar perfeitamente, sob o conceito básico de civilização que construímos, a miríade de temas que, no fim das contas, desemboca na questão do paradoxo somos iguais x somos diferentes. Cada um dos microepisódios que compõem a temporada se apresentam como diferentes maneiras de resolução do problema que a série aborda, que é o fato de que metade da humanidade está louca (literalmente) para infectar e matar a outra metade.

Aqui pra nós, nada muito diferente do que é, na prática, o racismo e a misoginia como as grandes chagas da humanidade. Nada muito diferente também do que pode acontecer, como na série, no período de meses que arrasou com o planeta e destruiu as macro organizações políticas e territoriais que edificamos ao longo de milênios. A destruição sistemática dos ecossistemas e a emissão irrefreada de carbono podem provocar a mesma barbárie. Só que essa demora um pouco mais de tempo.

melanie linskey

Nesse sentido, The last of us pode ser considerada uma apresentação de hipóteses sobre como reagiremos ao fim súbito do significado básico de civilização, que é a construção de igualdades sociais que nos permitem viver juntos sem nos matarmos em massa. Sem isso, novos padrões definirão quem é diferente de quem, e quem é igual a quem. Nesse contexto, quais critérios de igualdade e diferença criminalizarão o extermínio do outro?

Ser igual ou ser diferente depende da necessidade

Em princípio, os outros em The last of us são os infectados pelo cordyceps – conclusão fácil, ingênua demais, em se tratando de seres humanos. Convenhamos: se se parasse nisso, nem série haveria. O problema é que, a partir dessa distinção entre humanos e infectados, as situações extremas a que os sobreviventes são submetidos os compele a definir novos parâmetros de igualdade e diferença também entre os “vivos”. Além disso, as diferenças estabelecidas, junto com seus efeitos, nunca desembocam num reforço dos fios da teia social – muito pelo contrário.

As diferenças são criadas para dar conta das crises inevitáveis em grupos humanos forjados sobre os escombros de um mundo que ruiu. A viagem de Joel e Ellie passa por alguns desses grupos. As comunidades se encontram cada qual numa etapa de nosso processo civilizatório. Para elas, os parâmetros para medir os iguais e os diferentes podem referir-se às condições de sobrevivência.

Diferentes estágios civilizatórios

Há a nanocomunidade de Frank e Bill, onde todos os de fora são diferentes, salvo raríssimas exceções. Igualmente, há a pequena comunidade do resort que congela no centro da cordilheira, onde as pessoas são iguais até o momento em que servirão aos propósitos urgentes de sobrevivência dos outros membros. Também há os remanescentes de Kansas City, libertos dos opressores que os julgaram diferentes, mas ainda assim incapazes de se manterem iguais, unidos entre si.

frank e bill

Observe-se que em Kansas City o privilégio é dado aos interesses pessoais. Com isso, não se consegue manter o interesse coletivo, e as teias sociais irrevogavelmente se rompem. A presença dos infectados no subsolo é uma metáfora perfeita para onde se deposita a degeneração ética que os sobreviventes da cidade não conseguiram vencer.

E, por fim, a comunidade mais parecida com a ideia de convivência civilizada que nós seres humanos tanto desejamos. Mas ela se aproxima daquilo que muitas pessoas, muitas delas aqui no Brasil, acreditam ser o fim da humanidade. Que paradoxo…

Há uma tese amarrando a narrativa

The last of us altera o eixo de observação das etapas civilizatórias. Do eixo temporal, em que se observa a história da civilização notando o que, em princípio, foram saltos evolutivos, a série enquadra o eixo espacial, em que civilizações em vários estágios de evolução coexistem ao mesmo tempo em diferentes regiões geográficas. A imensa distância entre elas favorece a que elas se estruturem de maneira autônoma.

Tommy e Maria

 

Se observarmos como cada uma das comunidades de The last of us se organiza, poderemos reconhecer uma tese subjacente ao que impulsiona a narrativa ao longo dos episódios da série. Propõem-se fatores externos e internos aos seres humanos que podem ameaçar e até destruir uma civilização.

O fator externo seria a imposição absoluta da necessidade da sobrevivência. Ou, em resumo: a fome crônica, que nos coloca numa condição de suspensão da racionalidade que nos diferencia das outras espécies do planeta, e elimina qualquer possibilidade de enxergar os outros como iguais.

Os fatores internos seriam dois: a vingança e o ressentimento. As pessoas dominadas por esses sentimentos dão mais espaço aos afetos narcísicos do que ao sentido de comunidade que nos permitiu superar os desafios da natureza.

Porém, também está embutida nesta tese o que sustenta a integração e a perpetuação das civilizações no caminho de uma plenitude social: o amor, a empatia e o senso de perpetuação. Mas construir esses sentimentos todos é algo desafiador, ainda mais quando os perigos do ambiente são tão imediatos.

Henry e irmão

A jornada pessoal de Joel e Ellie, esperançosa mas realista, conduz para essa condição humana, que é o que de melhor conquistamos em nossa presença neste planeta. Nos fazer amar essa jornada é, como Marina Pais afirma em sua resenha, “o triunfo de qualquer história”.

O Oeste como, ainda, um lugar de redenção e renascimento

Termino mencionando como é significativo que os personagens busquem a salvação da humanidade no Oeste. Durante a colonização das Américas, o Oeste era o novo mundo. Materializava o sonho de mais riqueza para os poderosos, e redenção, renascimento para os mais pobres. Na História que os europeus contam, o Oeste representou a conquista de terras abertas a uma nova vida de liberdade e prosperidade.

Entretanto, preciso lembrar que, em todos os casos, as conquistas se fizeram invariavelmente com o extermínio dos povos que já ocupavam aquelas terras há milênios, mas ninguém deu muita bola pra isso. Certamente, os invasores se achavam naturalmente merecedores dessas conquistas. E, para eles, as populações originais das Américas não eram seus iguais.

Joel e Ellie

Em The last of us, a história se repete: pessoas partem rumo ao Oeste em busca de salvação e vida, eliminando os diferentes, infectados ou não, que podem impedir seu objetivo.
Enfim: narrando a saga dessas pessoas, a série ensina que não há apenas avanços civilizatórios. Igualmente, pode haver também retrocessos. É assim também no mundo “real”, quando gente insatisfeita com o desenvolvimento humano chega ao poder. Os efeitos disso, muitos de nós brasileiros já entendemos quais são.


Ficha Técnica
The last of us (2023) – Estados Unidos
Direção: Ali Abbasi, Jeremy Webb
Roteiro: Neil Druckmann, Craig Mazin
Edição: Timothy A.Good
Fotografia: Eben Bolter, Ksenia Sereda
Design de Produção: John Paino
Trilha Sonora: Gustavo Santaolalla
Elenco: Pedro Pascal, Bella Ramsey, Anna Torv, Melanie Linskey, Lamar Johnson, Nick Offerman, Murray Bartlet

 

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