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Acabe com eles

Esta resenha pode trazer spoilers sobre “Acabe com Eles” (2024) de Christopher Andrews, disponível na plataforma Mubi.

O Cinema também se faz de adaptações e subversões

O Western é um dos gêneros cinematográficos mais conhecidos do grande público em toda a história do Cinema. Inúmeros cineastas bebem do manancial dos filmes icônicos de John Ford, Sergio Leone e muitos outros  realizadores de diferentes nacionalidades.

Os enredos que se desenrolam durante o período do avanço branco sobre os territórios indígenas da América do Norte compuseram ao longo dos anos o imaginário do público sobre os Westerns. Esse imaginário narrativo inclui tramas em torno de disputas territoriais, roubos, assassinatos e traições numa terra que, se não era completamente sem lei, contava com frágeis sinais de civilização.

Nesse mundo, emerge a virilidade de homens corajosos, de caráter nobre ou vil, mas sempre absolutamente machos, porque só homens assim resistem e perseveram na “América” bravia.

acabe com eles ovelhas

Contudo, ao longo dos anos, e por força da emergência dos estudos em gênero, era só questão de tempo para o Western começar a sofrer adaptações narrativas que, em alguns casos, deságuam na completa subversão de seus modelos mais representativos. Filmes como “Ataque dos Cães” e “First Cow – A Primeira Vaca da América” fazem isso. Ambos problematizam a masculinidade violenta do Western. Entretanto, de todo modo, ao fazerem isso, atualizam e revigoram a potência desse gênero como estrutura narrativa.

“Acabe com eles” não realiza subversões tão profundas quanto os dois filmes acima, mas também abre espaços para questionarmos a masculinidade como estrutura de poder.

As alterações de “Acabe com Eles” sobre o formato básico do Western

“Acabe com eles” interferiu com sucesso no modelo narrativo do Western clássico. Porém, ao mesmo tempo, o ressituou na Irlanda do presente. O roteiro de Christopher Andrews e Jonathan Hourigan suprimiu, da estrutura do Western, elementos narrativos de fundo. Contudo, um dado fundamental do cerne desse modelo precisou igualmente ser reformulado, inclusive porque é justamente sobre esse elemento que o filme justifica sua existência.

Sobre o que foi retirado da periferia do modelo do Western tradicional: o enredo de “Acabe com eles” não podia se sustentar num cenário de um país a ser desbravado. A História da Irlanda remonta a milhares de anos, portanto não há um centímetro daquela ilha que não já tenha sido pisado pelo ser humano. Porém, toda terra, como sabemos, é propriedade de alguém. Em “Acabe com eles”, isso não é diferente, mas a propriedade em disputa é o que está sobre a terra: as ovelhas de Michael (Christopher Abbott) e seu pai viúvo Ray (Colm Meaney).

acabe com eles Barry e Michael

Entretanto, para manter a atualidade que torna o filme tão interessante, é preciso também observar um dado do cerne do modelo do Western. É ponto comum entre os analistas das narrativas cinematográficas que o Western clássico mantém uma visão de masculinidade hegemônica, não raro violenta. Os protagonistas dos Westerns são machos alfa cujo comportamento impositivo é valorizado. Numa terra sem lei, até o assassinato passa sem punição, e, muitas vezes, dependendo de quem se mata, pode-se até ser premiado.

Em “Acabe com eles”, ao contrário, a temática justamente deplora essa masculinidade impositiva. Aliás, a desconstrução dessa masculinidade é o centro do filme. Embora na tela presenciemos uma Irlanda sem lei, isso não significa que seus personagens não serão punidos por seus crimes. Porque tais crimes são sempre efeitos de sua entrega aos instintos de macho mais primitivos. E isso nunca termina bem.

Em “Acabe com Eles”, a natureza se impõe sobre a cultura

É interessante observar a absoluta ausência de qualquer força policial ou jurídica durante toda a projeção de “Acabe com eles”. A Irlanda sem lei é o cenário ideal para um enredo que envolve homens em contenda não apenas por ovelhas. Estas são apenas uma desculpa para que rancores do passado e invejas do presente venham à tona com força total. Evidentemente, sem freios morais ou legais, esses homens se sentem livres para mergulhar até o fundo do poço, culpando a si mesmos e aos outros por suas tragédias pessoais.

Em lugar das forças civilizatórias, o que os circunda é a paisagem espetacular da ilha irlandesa, e suas montanhas selvagens onde pastam as ovelhas. Recorrentemente exibida por Christopher Andrews, a paisagem acolhe homens absolutamente libertos de qualquer amarra, exercendo aquela liberdade tanto apregoada nas manifestações da extrema direita brasileira: a liberdade de os homens fazerem o que quiserem, quando quiserem, com quem quiserem e do jeito que quiserem.

rashomon acabe com eles

Nesse sentido, está absolutamente pertinente a “Acabe com eles” o efeito Rashomon que o roteiro emprega. Isso possibilita situar homens diferentes, cada um por vez, na posição de agenciamento sobre a narrativa. Assim, pelo menos dois deles terão a oportunidade de agir exercendo sua tão sonhada liberdade sobre a natureza e, o que lhes daria ainda mais prazer, sobre outros homens também. A questão é que, por trás dessa liberdade, o que há é a manifestação de recalques de macho. Transformando-se em ações efetivas, e sem nenhum freio moral, tais recalques transformam-se em tragédia.

Talvez, ao fim e ao cabo, seja esta a ideia fundamental em “Acabe com eles”. Sem freios civilizatórios, o exercício livre da masculinidade pelos homens, conforme seu desejo íntimo e recalcado e sua visão distorcida de liberdade, resultará em tragédia.

Uma espiral de disputas

Michael (Christopher Abbott de novo confirmando sua preferência em estar e produzir filmes no mínimo interessantes) traz a culpa de um erro fatal que destrói não apenas seu presente, mas também seu futuro. Em função desse erro, perde a namorada Caroline (Nora Jane-Noone), que acaba se casando com outro homem.

Michael vive recluso com o pai na propriedade vizinha à casa da família de sua ex-namorada, que inclui seu marido Gary (Paul Ready) e seu filho Jack (Barry Keoghan). Acontecimentos inesperados que poderiam ter sido evitados despertam o inferno particular de Michael, que se vê numa espiral de disputas entre machos que envolvem até Caroline, não raro destituída, por meio dos discursos masculinos, de sua condição de pessoa.

CAroline

Do outro lado da cerca, o jovem Jack (o espetacular Barry Keoghan mostrando de novo porque é um dos atores mais admirados e festejados de sua geração) está ansioso por afirmar-se naquela terra de machos-alfa. Presencia a emasculação social do pai, que por sua vez o trata como um filhinho-da-mamãe. Por isso, esforça-se em se fazer notar e orgulhar pelo pai. Mas, igualmente, assim como os outros, o faz ignorando completamente todo senso de norma social ou legal.

Não há nada para refrear minimamente os instintos desses homens, entregues ao próprio desejo de afirmação, à inveja, à competição voraz e à vingança.

A Arte política que vem da Irlanda

O resultado é uma torrente violenta de testosterona, e de uma natureza sem qualquer lapidação cultural. Os homens em “Acabe com eles” (aliás, o título brasileiro é tão rico em significações quanto o original “Bring them down”) se comportam como os personagens dos Westerns tradicionais. Entretanto, agora, com tudo o que sabemos sobre o que significa a masculinidade impositiva e selvagem, a reivindicação de sua plena existência resulta na destruição desses homens: destruição deles entre si, e também a si mesmos.

acabe com eles arma

Em suma, “Acabe com eles” é mais um excelente exemplar do cinema irlandês, após outra recente joia preciosa. Trata-se do ousado “Os Banshees de Inisherin” (2022), de Martin McDonagh. “Banshees…” também se constitui de múltiplas camadas que revelam mensagens cifradas sob a epiderme aparentemente simples e direta de seu enredo. Essas mensagens, como em “Acabe com eles”, também tornam o filme um manifesto político, acessível a quem souber ler nas entrelinhas de sua estrutura de Fábula, um modelo tão popular e facilmente identificável pelas pessoas.

Igualmente, subjacente a uma estrutura narrativa também popular e facilmente identificável, “Acabe com eles” se presta a recusar a validação ética e moral da masculinidade apregoada pelos Westerns. Mesmo sem a tessitura enigmática de “Banshees…”, “Acabe com eles” é um filme importante pela sofisticação estética e pela absoluta atualidade de seu tema e sua tese. Espero que os espectadores possam identificar as relevantes subversões propostas pelo filme, e que elas permaneçam por muito tempo em sua memória e suas reflexões.


Ficha Técnica
Bring Them Down (2024) – Irlanda
Direção: Christopher Andrews
Roteiro: Christopher Andrews, Jonathan Hourigan
Edição: George Cragg
Fotografia: Nick Cooke
Design de Produção: Fletcher Jarvis
Trilha Sonora: Hannah Peel
Elenco: Christopher Abbott, Barry Keoghan, Colm Meaney, Nora-Jane Noone, Paul Ready

 

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