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Estado Zero: 1ª temporada

Última atualização: 02/11/2020

Impossível iniciar este texto sem antes apontar a má tradução que o título da minissérie da Netflix em seis episódios Stateless recebeu para o Brasil: Estado Zero. Este termo em nada se assemelha ao estado de coisas que o título original sugere e já antecipa ao espectador. Por isso é importante começar falando um pouco sobre as diferenças formais e semânticas entre “Stateless” e “Estado Zero”. Assim, fica mais fácil entender do que de fato trata a minissérie. Sobretudo porque sua forma e seu conteúdo são coerentes com o nome que os produtores lhe deram.

A base da palavra “stateless” é o substantivo “State”, em português “Estado”. Aqui, ele é obviamente empregado em seu sentido político. Esse substantivo é transformado em adjetivo com o acréscimo do sufixo do inglês “less”, que tem como equivalente o (caminhando para) prefixo “sem”. Podemos ver essa aplicação em palavras como “sem-terra” e “sem-teto”.

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Para efeito de fidelidade ao título original e ao tema da obra, a melhor tradução para o português seria algo como “Sem-Estado”. Ou, para fins estéticos, “Os sem-Estado”. Ou, mais poeticamente, “Os sem-pátria”, considerando-se que “homeland”, “pátria” em inglês, é uma palavra que soaria estranha com o sufixo “less”.

“Homelandless” não me parece algo que falantes do inglês gostariam de ver em título de obra da Netflix. Restaria, ainda, como possibilidade de título, “Expatriates”, no português “expatriados”. Este termo também seria correto, mas estranho para servir como título de um obra de ficção.

A importância do título em uma obra como Estado Zero

Eu estou gastando o espaço deste texto e o tempo de vocês falando da diferença entre “Stateless” e “Estado Zero” porque o título de uma obra antecipa para o seu espectador o modo de enquadramento de seus conteúdos. Isso torna impossível comparar o adjetivo “Stateless”, que recorta de maneira precisa as pessoas sobre as quais a minissérie versará (e pessoas é sempre o que há de mais interessante), com o substantivo “Estado Zero”, que desvia o foco das pessoas para o país (no caso, a Austrália). Além disso, “Estado Zero” não quer dizer nada em nenhum sentido que eu imagino – para haver Estado zero deve haver também um Estado um, algo que não é possível. Tampouco nos diz coisa alguma sobre o que veremos.

E também não se poderia considerar “Estado zero” como ausência de Estado: na verdade, a série mostra um Estado mais presente e forte do que nunca, operando a biopolítica no seu sentido mais radical.

A xenofobia esvaziando a singularidade de quatro pessoas

Mesmo assim, espero que o leitor releve o título semanticamente esvaziado proposto pela Netflix brasileira. Faça essa concessão e usufrua da série para refletir sobre relevantes questões contemporâneas num trabalho que se constrói em duas camadas. Uma é dedicada a rastrear as vidas íntimas das pessoas. Seus desejos, angústias, reações e transformações diante da realidade chocante que, cada qual de sua perspectiva, elas encaram. A outra é voltada para testemunharmos a crueldade absoluta com que os governos de países alvo de movimentos de imigração tratam os sem-pátria. Ameaçados de morte por guerra e miséria em seus países de origem, essas pessoas se tornam párias, algo menos do que pessoas. Elas são destituídas de suas próprias histórias, desejos, volições e identidades, enquanto esperam indefinidamente por um visto que lhes permita tentar nova vida em outro país.

Dispostas numa relação figura/fundo, essas camadas dispõem de partida a existência de quatro personagens cujas vidas são afetadas de diferentes maneiras pelo sistema de controle de imigração de refugiados na Austrália: Ameer (Fayssal Bazzi), refugiado afegão que escapa dos talibãs com sua família; Cameron (Jai Courtney), um dos guardas que compõem a segurança do campo para onde Ameer é levado; Clare (Asher Keddie), a oficial responsável pelo campo; e Sophie (Yvonne Strahovsky), australiana com problemas mentais que se esconde no campo tentando sair do país.

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As histórias de três desses personagens – Ameer, Cameron e Clare – são poderosas pelo que dizem de si e também pelo que revelam do contexto social em que eles se integram. Contam com a vantagem de se apresentarem em formato de minissérie. Isso lhes confere tempo para que suas histórias sejam contadas, que nos identifiquemos com eles e, sobretudo, que testemunhemos, em toda a sua extensão, como a dinâmica de forças e a estrutura injusta em que estão colocados vai deformando suas personalidades e deteriorando suas singularidades, na direção de se tornarem identidades previamente determinadas, formatadas e necessárias à perpetuação daquele sistema.

Tudo isso a um altíssimo preço. Para sobreviver num ambiente em que, seja realizando o serviço sujo de repressão direta dos refugiados cujas vidas estão paralisadas à espera de uma decisão que talvez nunca venha, seja se encontrando numa condição sub-humana de vida apenas por terem nascido no país errado, esses personagens vão-se tornando emocionalmente desequilibrados, violentos, desesperados; às vezes, essas três coisas ao mesmo tempo.

O grande protagonista de Estado Zero é a Austrália

Cabe à história da quarta personagem, Sophie – que de fato aconteceu -, a denúncia da incompetência burocrática da imigração australiana. Ela é mero efeito, é preciso dizer, da desumanidade do tratamento dos refugiados que buscam o país como única alternativa de sobrevivência. Nesse contexto, Sophie não fala sobre si mesma. Sendo australiana, não corre o risco de deportação. O fato de ter permanecido em surto psicótico por longo tempo num campo de refugiados sem ser descoberta, contudo, mostra que, se até uma australiana branca permanece nesses campos sem que sua condição seja devidamente tratada, imagine-se o que ocorre e o que se faz com quem busca o país fugindo da degradação e da morte em sua pátria natal.

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A permanência de Sophie no campo de refugiados fala sobre racismo. É ele que lentifica a estrutura burocrática subjacente ao tratamento dos refugiados na Austrália. Mas é preciso dizer que Ameer, Cameron e Clare também provocam esse tema, na medida em que o comportamento que cada um manifesta no início da série vai se transformando à medida que sua história se desenrola. E também à medida que estabelece, cada vez mais acachapantemente, sua impotência diante da má vontade mastodôntica das autoridades em resolver os problemas e tensões imediatas que ameaçam a mínima convivência no campo, assim mantendo a mentira que cinicamente o governo australiano pretende vender para seus cidadãos.

O que percebemos no fim é que esses personagens agem não em função de desejos e motivações internas. Ao contrário, agem em reação ao que, em verdade, é infligido pelo grande protagonista da série, que é a Austrália – o sexto maior país do mundo, com um deserto enorme em seu interior, o famoso Outback. Em Estado Zero, a mise-en-scéne é construída e todos os seus elementos estão dispostos para enxergarmos o Outback como um grande nada, praticamente um não-lugar, dada sua gigantesca insalubridade.

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Nele, estão os campos de refugiados, também não-lugares, ocupados por não-pessoas. Todas elas, não apenas os refugiados, mas também os guardas e seus chefes, que até chegam ali com certa intenção de fazer alguma diferença e necessariamente são tragadas pela poeira calorenta e estéril do deserto. A nada é permitido crescer ou florescer: nenhum sentimento, nenhum direito, nenhum sonho. Nenhuma vida de fato.

Em Estado Zero, o Outback é o não-lugar destinado a não-pessoas, os “stateless” do título original. Nos campos edificados em seus domínios, os estrangeiros são avaliados para se decidir se eles estão aptos a usufruir do privilégio de serem australianos. “Estado Zero” é um raio-x de todos os situados naquele não-lugar, os avaliados e também os avaliadores. Todos são vítimas de um racismo estrutural que propõe, entre outras ilusões, a ideia de que se pode construir países como ilhas de prosperidade branca no meio de um deserto de miséria e desesperança, que engole a todos, não importando sua nacionalidade.


Ficha Técnica
Stateless (2020) – Austrália
Direção: Emma Freeman e Jocelyn Moorhouse
Roteiro: Tony Ayres, Cate Blanchett, Elise McCredie, Belinda Chayko e Xerxes Pordely
Edição: Mark Atkin e Martin Connor
Fotografia: Bonnie Elliott
Design de Produção: Melinda Doring
Trilha Sonora: Cornel Wilczek
Elenco: Fayssal Bazzi, Asher Keddie, Jai Courtney & Yvonne Strahovski

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