Querida Alice

Querida Alice

Última atualização: 15/07/2023

Em certo momento de Querida Alice, durante um diálogo entre três amigas, uma delas diz: “Eu queria que você tivesse nos contado isso antes”, e recebe da interlocutora, como resposta: “Eu não sabia o que dizer”. Essas duas frases resumem a premissa que sustenta o ótimo filme de Mary Nighy disponível na plataforma Amazon Prime. A premissa define que construir a forma de dizer sobre algo é um fator fundamental para que esse algo efetivamente exista como verdade. E, de fato, a protagonista Alice (Anna Kendrick) constrói para si a realidade do abuso psicológico que sofre na relação com Simon (Charlie Carrick), na mesma medida em que dá linguagem à sua condição.

Querida Alice lago

E, de fato, o filme se desenvolve a partir da crença de que a linguagem faz as coisas existirem. Ao longo dos 90 minutos de projeção, isso se materializa de duas maneiras: primeiro, nos diálogos entre Alice e as amigas Tess (Kaniehtiio Horn) e Sophie (Wunmi Mosaku), e, segundo, no recorte imagético que Mary Nighy escolhe para relatar a transformação de sentimento, pensamento e ação de Alice.

Uma violência que nem todo mundo reconhece

Entretanto, para que essa transformação aconteça, é necessário que conheçamos um pouco da situação de que Alice precisa escapar. A tarefa de oferecer isso não é simples: muita gente considera como violência apenas aquilo que nos atinge fisicamente. Essas pessoas ainda não se deram conta de que a violência física é apenas o segundo degrau na descida do poço em cujo fundo o feminicídio está à espera. Antes dela, há vários tipos bem comuns de violência psicológica, alguns deles impostos a Alice por Simon: controle, desqualificação, ameaça.

Querida Alice namorado

Assim, Nighy precisava, e conseguiu, construir uma atmosfera de terror mesmo com o casal sorrindo um para o outro e declarando seu amor. A disparidade física entre Alice e Simon, que não raro se aproximava por trás, o que por si provoca insegurança, contribuiu bastante para que o espectador já sentisse a tensão subliminar. A proximidade excessiva, e a mão de Simon constantemente sobre o ombro de Alice, produzem tanta sensação de sufoco em nós mulheres, que me pergunto se os homens observam isso sem se sentirem incomodados de alguma forma.

Querida Alice combate a misoginia sem ser misógino

Porém, ao mesmo tempo, e aí essa talvez seja a grande vantagem de filmes que falam sobre misoginia dirigidos por mulheres, é que em nenhum momento Querida Alice corre o risco de se transformar ele mesmo em um filme misógino. Filmes que retratam qualquer tipo de violência correm facilmente o risco de se tornarem fetichistas, caindo assim no problema que tentam denunciar. Essa grave falha os aproxima do fascismo moralista e hipócrita que engana eleitores realizando o contrário do que diz fazer, como descreve Marcia Tiburi neste vídeo.

A escolha de muitos cineastas para escapar ao fetichismo tem sido a de reduzir ao máximo o tempo de exposição do personagem à violência de que o filme trata. Melhor solução impossível, porque isso permite que rapidamente o personagem assuma protagonismo na história. Assim, deixamos de sentir pena dele e logo passamos a torcer por ele. Em plataformas de streaming, isso significa não desistirmos do filme no meio do caminho.

Querida Alice exposição

Além da opção acertada, Mary Nighy conta com o carisma adorável de Anna Kendrick, que ganhou nosso coração atuando e cantando na série A escolha perfeita (os dois primeiros filmes também disponíveis no Prime). À imagem leve da DJ genial,  Kendrick soma agora a percepção de maiores densidades dramáticas que seu talento pode conferir às  personagens.

Em Querida Alice, as pessoas se veem, mas não se falam nem se tocam

Para tanto, Mary Nighy situa e conduz Kendrick congruentemente no processo de compreensão da personagem sobre sua própria condição. Em parte do filme, a impossibilidade de Alice enxergar a si mesma é construída sempre com materiais translúcidos. Porém, eles estão ali como obstáculos, impeditivos para alcançar alguns entendimentos. São janelas que se fecham e vidros de carros cujos reflexos tornam impossível definir bem o que está do outro lado. São superfícies aquáticas, que trazem junto também a sensação de sufocamento e pânico.

De certa maneira, essas barreiras que só se permitem ser atravessadas com o olhar são a metáfora perfeita para o contexto da violência psicológica. Um relacionamento desse tipo nos parece a princípio harmônico e perfeito, mas relações assim não aceitam avançar fronteiras sociais e se integrar às pessoas. Geralmente, parceiros abusivos tentam de todos os modos afastar suas vítimas dos amigos e da vida em grupo. Constrói-se, assim, uma espécie de relação-aquário: as pessoas de fora e de dentro se veem, mas se enxergam distorcidamente; não se tocam, nem se falam.

Querida Alice amigas

Nesse sentido, essa barreira no filme forma uma bela rima com sua cena final. Ela nos sinaliza a esperança de que Alice possa reconstruir seu entendimento sobre o que é o amor e sobre o que é relacionar-se afetivamente com alguém sem se anular e se destruir.

A sororidade como a prática feminista por excelência

Conforme eu disse acima, a capacidade de falar de algo vem junto com a capacidade de reconhecer que esse algo existe. Mas é muito difícil que isso aconteça à pessoa sem que ela consiga estabelecer diálogos que a ajudem a alcançar compreensões. Há dois recursos em Querida Alice que aparecem como preciosos ensinamentos para a identificação da violência numa relação afetiva.

Um deles é sair de nosso próprio contexto espacial para conseguirmos “olhar de fora” a nossa vida, às vezes como se essa vida não fosse a nossa. Essa é a finalidade da viagem empreendida pelas amigas a uma cabana de campo, sem distrações além da busca por uma moça desaparecida. Aliás, nem essa busca é distração, porque o caso em questão tem nariz, rabo, focinho e pata de feminicídio.

Querida Alice sororidade

O segundo recurso é a presença das amigas Sophie e Tess, e aí o casting de Querida Alice dá seu toque de luxo, porque a sororidade entre elas se manifesta de forma interseccional. São mulheres de diferentes raças unidas para que cada uma se reconheça, se fortaleça nas outras, e todas se reconheçam, se fortaleçam como comunidade. Nada mais ubuntu: “eu sou porque nós somos”. Lindo filme.

Outros textos de temática de gênero no Longa História: A arte de amar, A filha perdida, Top gun – ases indomáveis, Thelma e Louise, First cow, Jane Austen e a sexopolítica do conhecimento, Deserto particular, Ela é o diabo.


Ficha Técnica
Alice, darling (2023) – Estados Unidos
Direção: Mary Nighy
Roteiro: Alanna Francis
Edição: Gareth C. Scales
Fotografia: Mike McLaughlin
Design de Produção: Jennifer Morden
Trilha Sonora: Owen Pallett
Elenco: Anna Kendrick, Charlie Carrick, Kaniehtiio Horn, Wunmi Mosaku

 

Publicado Por

1 comentário em “Querida Alice

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *