Zagreu na imagem de Hades

Hades: escape da repetição

Última atualização: 21/02/2021

Este texto tem alguns spoilers do jogo Hades. Não são muitos, mas são o suficiente para merecer o aviso. 

Em Hades, você controla Zagreu, princípe do inferno que deseja fugir do reino do seu pai, Hades. Para ascender à superfície, é preciso ultrapassar três submundos: Tártaro, Asfódelos e Elysium. Há inimigos e chefões diferentes em cada uma dessas seções, e é preciso derrotar todos eles para ultrapassá-las. E, quando eu digo todos, quero mesmo dizer todos. Qualquer erro é fatal; a cada derrota, o Estige carrega Zagreu, que retorna ao ponto de partida. Assim, as falhas trazem a necessidade de repetir toda a trajetória, na esperança de que, desta vez, Zagreu não seja mortalmente ferido por uma górgona. Nos videogames, essa necessidade de recomeçar do zero a cada falha tem um nome: morte permanente. E ela é uma das características dos jogos chamados roguelike, gênero em que Hades se insere.

Zagreu no Tártaro

É, eu sei, parece repetitivo. Qual é o sentido de tentar finalizar um jogo em que é preciso repetir a mesma trajetória dezenas de vezes? A resposta para essa (justa) indagação está na outra característica dos jogos roguelike. Nesses jogos, as fases são criadas de forma aleatória. Ou seja: você não repetirá a mesma trajetória sempre. A cada nova tentativa, o jogador se depara com arquiteturas diferentes para cada fase, e novos inimigos, em quantidades variadas. Além dessa salvação típica do gênero, o jogo oferece outros elementos que tornam a repetição mais suportável.

Incentivos para a persistência

Há duas categorias de incentivos para que o jogador continue tentando escapar do inferno. A primeira, que vou resumir no próximo parágrafo, é mecânica: se refere à forma como o jogo se desenrola. A segunda, a que vou dedicar praticamente todo o resto do texto, é narrativa: se reporta ao que o jogador quer descobrir.

Zagreu em Asphodelos

Sobre a mecânica, há dois dispositivos que variam a jogatina. O primeiro é o sistema de power ups, que se dividem entre as bençãos fornecidas pelos Deuses dentro de cada tentativa de fuga; e os pontos de escuridão, que aprimoram Zagreu permanentemente. Inclusive, os pontos de escuridão fazem com que a classificação de Hades oscile entre roguelike e roguelite (se você quer saber mais sobre isso, este vídeo é um bom começo). O segundo ponto de variação está nos seis tipos de arma disponibilizados, cada uma com uma mecânica diferente. Não conseguiu derrotar Teseu com a lança de Hades? Sem problema, tente novamente com o arco e flecha de Hera, ou com os punhos de Deméter (se você se odiar).

Apesar de ser um jogo que tem a repetição como premissa, Hades não é chato. Mesmo que os submundos sejam sempre os mesmos, cada nova tentativa parece mesmo nova, e é fácil passar mais de dez horas tentando escapar com Zagreu. E é aqui que quero introduzir a segunda parte deste texto. Porque o mote da repetição em Hades não está só no gênero. Está, também, nas histórias que inspiram o jogo: na mitologia grega.

A sina dos mortais

Não importa o horário ou a data em que você lê as minhas palavras, uma coisa é certa: Sísifo estará carregando uma rocha. Aliás, se você jogar Hades, pode até mesmo encontrá-lo no Tártaro, e quem sabe ganhar um ou dois brindes. O trabalho de Sísifo, de tão repetitivo, é uma metáfora para um outro tipo de trabalho, que você que está lendo provavelmente conhece. Nós, humanos (ou mortais, para usar uma palavra mais apropriada), também estamos presos às nossas rochas. Há até um nome para a repetição com toques de variação, que no nosso caso não é roguelike, é rotina. Assim, a repetição é um dos elementos que diferencia os Deuses dos mortais. Em Hades, é Zagreu que ilustra esse princípio: ele pretende, literalmente, ascender, e as bençãos são dadas pelos Deuses para facilitar a sua chegada ao Olimpo. Pelo menos, é isso que eles pensam.

Zagreu no Elysium

E, veja só, aqui está o spoiler, o que Zagreu pretende verdadeiramente não é chegar ao Olimpo. É encontrar a sua mãe, Pérsefone, que está na superfície. O real motivo para a insistência na fuga está no desejo de conhecer uma pessoa que é importante para ele. De estabelecer uma relação, descobrir mais sobre a sua origem. A mecânica não é dispensável, mas é a narrativa que impulsiona a trajetória. A fuga da repetição é motivada pelo desejo de se conhecer o desconhecido, descobrir o imprevisível. A cada tentativa de fuga bem-sucedida, Pérsefone tem coisas novas a dizer a Zagreu, diálogos que ele não pode prever. E isso é uma coisa com que o jogador, um mero mortal, pode se identificar.

Formas de escapar

Assim como Zagreu, nós também temos a nossa trajetória repetitiva. Não importa se você dormiu cedo ou tarde, depois do sábado sempre virá o domingo, certo? É, isso até que é verdade, mas não é toda a verdade. Porque se no sábado você não cozinhou nada, mas conheceu a pessoa com quem um dia irá se casar, aposto que esse vai ser um sábado diferente. Na verdade, eu diria até que vai deixar de ser um sábado. Porque vai se transformar em uma data, um número específico, anotado em um calendário e celebrado anualmente. E, olha só, isso é só um exemplo pequeno de todas as variações possíveis, um exemplo que restringe o texto, para que ele não se estenda ao infinito.

Porque a sua Pérsefone nem precisa ser uma pessoa. Pode ser um livro lido, que te fez olhar o mundo de uma forma diferente. Um filme assistido, que te fez descobrir a existência de uma civilização longínqua, com a qual você jamais teria contato. Uma massinha de modelar, deixada no chão pelo seu primo, que te fez descobrir que, olha só, você ainda é maleável. A rotina é nossa sina (rima intencional); mas não nossa prisão. Porque o significado que atribuímos a ela é a nossa fuga. Para Zagreu, a fuga é encontrar Pérsefone. Para mim, hoje, foi escrever este texto, enquanto espero o arroz terminar de cozinhar. E, se posso te dar uma dica, para você pode ser jogar Hades, e descobrir que um roguelike, tão repetitivo, tem muita coisa nova a dizer.


Ficha Técnica
Hades (2020) – Estados Unidos
Criador: Greg Kasavin
Desenvolvimento: SuperGiant Games
Trilha Sonora: Darren Korb
Console: macOS, Windows, Nintendo Switch
Lançamento definitivo no Brasil: 2020
Jogadores: 1
Gênero: Roguelike
Classificação: Livre

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